terça-feira, dezembro 27, 2005

O JARDINEIRO FIEL, de FERNANDO MEIRELLES




Naturalismo: O Cortiço, de Aluísio Azevedo, que foi publicado em 1890, retratando a profusão de gentes que viviam amontoadas nos cortiços da cidade foi, certamente, um dos argumentos que o prefeito Pereira Passos usaria no início do século XX para instaurar o famoso "bota abaixo", aquela reforma urbana que escorraçou todos os pobres para baixo do tapete e transformou o Rio na Paris dos trópicos. Em 2002, a tradição naturalista se mostrou ainda forte com o sucesso de bilheteria Cidade de Deus, de Fernando Meirelles. Naturalista porque quer se vender como verdade inquestionável, utilizando-se capciosamente de um depoimento do bandido Mané Galinha no Jornal Nacional, para legitimar a veracidade de toda a trama. Foi mais fácil tomar os moradores da favela como bandidos, se esquecendo dos grandes traficantes do asfalto. A mídia, com sua tendência ao reducionismo, adorou a idéia. Os moradores, não. Agora, em O jardineiro fiel, Fernando Meirelles se redime fazendo um filme que, naturalista ou não, joga a culpa nos grandes dominadores do mundo. O termo mais lugar-comum que os críticos utilizaram para falar do filme foi 'conspiração internacional'. E é isso mesmo. O filme, que começa com cenas românticas, logo se torna um thriller político ao narrar a história da mulher de um diplomata inglês, Tessa, que descobre laboratórios farmacêuticos testando na miserável população africana um tipo de medicamento contra a hepatite. Em contrapartida, prestam assistência enganosa ao povo que, abandonado, aceita ajuda do primeiro que lhe estende a mão. Com o desvendamento da rede que inclui não só empresas, mas também o acobertamento destas por setores do governo inglês, assim como a ameaça de tornar pública a denúncia, o assassinato da ex-futura heroína é inevitável. Só a partir daí, Justin, seu marido, vai sair da redoma que o protegia para correr o mundo atrás da resposta para a morte de Tessa e perceber que há muito mais corrupção do que ele imaginava. Apesar das mais de duas horas (129 minutos), a edição privilegia muito pouco a relação amorosa entre Tessa (Rachel Weisz) e Justin (Ralph Fiennes), fazendo parecer insólita a motivação do diplomata para levar a ativista à África junto com ele, já que ambos acabaram de se conhecer (só ao final a relação amorosa é retomada, com um desfecho bastante poético). Pouco explorada também é a atividade de jardineiro de Justin. Se se leva à risca o nome do filme, a trama corre o risco de ficar incompreensível já que o personagem aparece jardinando uma única vez. Por outro lado, a quantidade de acontecimentos mirabolantes que poderiam ficar soltos ganham um encadeamento admirável, deixando à mostra o excelente trabalho de direção de Fernando Meirelles. Há que se ressaltar a alternância de filtros de cores frias, quando a câmera mostra o mundinho criado por membros do governo e altos-executivos em suas festas e recepções em plena aridez africana, e os filtros de cores quentes aliados à câmera desorientada, ao mostrar a imensidão da miséria vivida pela maioria da população. A câmera na mão e os movimentos de travelling, como se estivéssemos fazendo uma viagem ao inferno, durante as tomadas de favelas e das sarjetas, nos jogam numa incompreensão da pobreza humana em contraste com o vampirismo de muitos que lá deveriam estar cumprindo um outro papel, que não o de tornar ainda mais pobre a castigada África. Acabei sendo apoderado pelo sentimento de revolta que o filme causa: no sinal de trânsito, tive uma atitude intolerante quando dois carros avançaram o sinal em faixas diferentes e quase atropelaram a mim e a meu amigo. No primeiro, soquei o vidro do carro e no segundo, chutei com força a lataria de um táxi, revoltado que estava com a falta de respeito da espécie. Depois, corremos porque o motorista parou e porque havia ali próximo um carro da polícia. Temi represália física pelas duas partes. Sim, é triste dizer, mas não confio mais na polícia carioca.

O Jardineiro fiel (The Constant gardener), 2005, Inglaterra / EUA, 129 minutos
Direção: Fernando Meirelles
Roteiro: Jeffrey Caine, baseado no romance homônimo de John Le Carré
Fotografia: César Charlone
Montagem: Claire Simpson
Elenco: Ralph Fiennes, Rachel Weisz, Danny Huston, Hubert Koundé

sexta-feira, dezembro 23, 2005

THE BROWN BUNNY, de VINCENT GALLO


Sim, há uma cena de sexo oral explícita em The Brown bunny. Chloé Sevigny, de fato, suga Vincent Gallo. Mas isso acontece quase no final do filme. E a carga dramática da cena, depois de tudo o que se passou, é tamanha que um possível olhar pornográfico do espectador se esvai. Pelo explícito e por outras coisas, o filme, dirigido, escrito, fotografado, montado, produzido e atuado (ufa!) por Vincent Gallo, foi eleito pelos críticos um dos piores na história do Festival de Cannes. Tudo bem, lá a cópia exibida tinha 30 minutos a mais, mas ainda assim considero o julgamento equivocado. Críticos erram, são humanos. Há muito o que se considerar em Brown Bunny. Chamar Vincent Gallo de narcisista, por exemplo, não procede. Se assim fosse, o que se diria, então, dos diretores que nem são donos do filme e nem por isso deixam de dar seus ataques de vaidade? Com a palavra Gallo: "Você acha que é divertido trabalhar sem assistente? Você acha que é interessante trabalhar sem suporte, um escritório de produção? Sentar numa merda de uma van com três caras dirigindo pelo deserto?". Esclarecido isso, vamos ao filme. Na trama, Bud Clay, um piloto de Fórmula II, depois de perder uma corrida em New Hampshire, segue para a Califórnia, onde será o seu próximo desafio. É nesse lugar algum, entre a saída e a chegada, que vamos acompanhando a solidão de Bud. Seqüências longas, como a da corrida, em que o som grave das motocicletas some, dando lugar às imagens silenciadas e sem foco de câmera, vão nos dirigindo a algum mal-estar que não é revelado. Estradas, estradas, estradas, dia, noite, madrugada, deserto, chuva, montanhas, carro sendo guiado na escuridão, com a ajuda apenas das faixas de sinalização na pista. Bud percorre sempre em silêncio. Pouco importa a beleza da paisagem, pouco importa o foco ou a imagem com luz estourada no deserto. Bud não está lá. A câmera dentro do carro é tão subjetiva quanto nossa atenção, que começa a divagar nos planos longos, cansada de procurar a causa da introspecção. Quando pára nas cidades, Bud tenta travar um relacionamento com as mulheres que encontra, a prostituta, a mulher desiludida, a vendedora da loja de conveniências, mas tudo é em vão. Todas elas não expressam coisa alguma. Com as poucas pessoas que conversa, os diálogos são banais e quase inaudíveis. Quando menos se espera, quando se pensa que o filme ali estagnou, ficamos sabendo que Bud procura Daisy, a mulher com quem morou e a razão de seu sofrimento. Agora, eles se encontram num hotel para conversar. E as causas: Daisy, que era a mulher de Bud, foi pega em flagrante, depois de ter se drogado bastante numa festa, transando ou sendo estuprada por três homens. Saiu da festa numa ambulância. Estava grávida, perdeu o filho. Bud nada fez, apenas sumiu. Agora ela tenta se explicar. Nesse meio tempo se passa a cena de sexo oral entre os dois. Em seguida, Daisy tenta se explicar, pede o perdão de Bud. Mas ela diz também que morreu naquele momento. Em flashback, um corpo está sendo levado pela ambulância. O sofrimento de Bud, portanto, tem uma causa ambígua: a morte de Daisy, no sentido literal, ou seja, tudo o que ocorreu no hotel não passou de um sonho ou a morte figurada. Neste caso, o sofrimento é a mágoa de ver ali na sua frente, ainda que viva, a mulher que foi maculada, violenta e voluntariamente, pelos outros, diante de seus olhos. No plano final, um close do perfil de Bud, na estrada. Quando saí do Odeon, compreendi porque Brown bunny, apesar da má fama, estava sendo exibido na sessão cineclube, dentro da programação dos melhores do ano.

The Brown bunny (The Brown bunny), 2003, EUA/ Japão /França, 93min
Direção, roteiro, fotografia e montagem: Vincent Gallo
Elenco: Vincent Gallo, Chloé Sevigny, Cheryl Tiegs

sexta-feira, dezembro 16, 2005

ELOGIO AO AMOR, de JEAN-LUC GODARD



Como narr-ar God-ard? Como falar de um filme de Godard se não há linearidade regular? Posso aqui desrespeitá-lo respeitando-o. Posso, então, fazer aqui um filme escrito. Mas o que é um filme se é escrito? Pois que o próprio, ele, não eu, popularizou junto aos cineastas da nova onda francesa, na década de 1950, que a câmera é sim uma caneta, uma 'caméra-stylo'. O diretor dirige, filma, como quem escreve uma história, um livro. Ele, Godard, já colocou em xeque a própria existência ao decretar a supremacia da palavra sobre a imagem. Contrariamente, Godard é puro sentido, explosão de cores, sons, imagens... Tudo desconectado!!! Em Elogio ao Amor, Godard fala das 'notas sobre o cinematógrafo', clássico de Robert Bresson (lançado este ano no Brasil). Diz ele, não exatamente nestas palavras, que 'o diretor dirige, antes de tudo, a si próprio'. Ora, o que faz Godard se não se dirige a si mesmo? ("Não consigo fazer o enorme trabalho de direção de atores que se pode encontrar em Bergman ou Renoir, quando podemos ver que eles amavam os atores como um pintor ama seus modelos.", diz Godard) Roncos. Orquestra externa na rotunda do CCBB vazando na sala de cinema. Bresson citado por Jean-Luc Godard novamente: 'não é o acontecimento que deve causar a emoção, mas o contrário'. Risos no escuro. A fileira de trás ri discretamente de mim e de minha amiga que, por nossa vez, rimos sem nos conter do velho que ronca e dá soluços atrás de nós. Até que ele diz: "que filme ruim!" e volta a dormir. Claro, está no seu direito. O que é o filme de Godard senão o caos? O que seria de Godard se cá fora, na platéia, não houvesse toda a sorte de situações estapafúrdias? Há que haver roncos e reclamações e risos e orquestra e barulho de saquinhos de biscoitos, amendoins, balinhas etc. Há que 'godardizar' a platéia e fazer ver que cinema não é recepção passiva. Pode sim, no cinema, haver xingamentos direcionados ao diretor, Sr. Jean-Luc, afinal, Godarte. A mostra onde o filme está inserido chama-se, inclusive, Cinema no cinema. Metalinguagem. Mostra-me os bastidores do set em que filmas e te direi quem és. Ou seja, se destina e é uma homenagem aos diretores que não pretenderam fazer de seus filmes uma cópia do real, a mímesis que Platão execrou, colocando assim o espectador ciente de que tudo se trata de cinema. Aliás, os franceses, gatos escaldados que são, costumam utilizar a palavrinha mágica quando querem dizer que alguém mente: 'fulano ta fazendo cinema'. Não precisamos, portanto, de uma montagem com narrativa tradicional nasci-cresci-morri à la David Coperfield. É claro que gostamos de catástrofes, grandes romances, enfim, do cinemão, mas reivindicamos, nós cinéfilos e espectadores, que se abra o jogo, queremos que os diretores, produtores e atores saibam que não caímos nessa lorota. Tudo bem, eu confesso que choro no escurinho do cinema. Ronco, bandinha lá fora, quebra da linearidade cá e acolá, o roncador se levanta faltando quinze minutos para cair o pano. E o filme? Ah, sim. Atores que ensaiam para montar um filme sobre as fases de um relacionamento amoroso. Na tela, o passado é em cores. O presente, em P&B. Vai saber! Dá tempo de fazer piada com os americanos. Diz a personagem francesa ao produtor de cinema americano: - Mas Estados Unidos de onde? - Estados Unidos da América. - Da América? Mas o país não é toda a América. Veja o Brasil: Estados Unidos do Brasil. É por isso que vivem se apropriando da história dos outros países. Enfim, esquecem da fronteira, acham que o domínio é global e fazem de Hollywood um simulacro do mundo, comportando em seus estúdios a Itália, o Marrocos e quem mais desejarem. E aí eu tenho que parar de escrever. E aí eu não falei nem de metade do filme. E aí que Godard é assim, efusivo, multicolor, multisonoro, multivisual, multicolagem-multidescolagem. E eu procurei ser tão disperso quanto. E aí que...

Elogio ao amor (Éloge de l'amour) 2001, França/Suíça, 97min
Direção e roteiro: Jean-Luc Godard
Elenco: Bruno Putzulu, Cecile Camp, Jean Davy, Françoise Verny, Audrey Klebaner, Philippe Lyrette

segunda-feira, dezembro 05, 2005

MARCAS DA VIOLÊNCIA, de DAVID CRONENBERG



Eu andava pela Cinelândia, caminhando em direção ao Theatro Municipal, depois de sair do Cine Palácio. Entre o burburinho de pessoas que bebiam e conversavam no Amarelinho, meninos que cheiravam cola na calçada em frente e taxistas que se reuniam próximos à estação do metrô para admirar com olhares esticados as mulheres que passavam, eu fazia filosofia barata com meus botões. Comecei a imaginar a imensidão de segredos de cada um daqueles rostos anônimos que passavam por mim respirando o ar da segunda-feira, início de noite, saída do trabalho. Pensava a partir do filme de David Cronenberg, que eu acabara de assistir, na tese de que a violência é inerente ao ser humano e, por isso, somos coniventes com os atos repreensíveis de quem amamos. E, inclusive, somos capazes de ser cúmplices. Em Marcas da violência, Tom Stall (Viggo Mortensen) é um sujeito pacato numa cidade igualmente pacata, dono de um pequeno restaurante e com uma família aparentemente normal. Até o dia em que dois bandidos entram no restaurante e Tom os mata em legítima defesa. Daí, a mídia local transforma Tom num herói e o restaurante vira quase ponto turístico dos próprios habitantes. A aparição de Tom nos jornais dá pistas para uns sujeitos estranhos encontrarem quem procuravam. Estes colocam em xeque a identidade 'Tom Stall' afirmando que Tom nada mais é que Joey, um sujeito violento que tentou apagar um passado de delinqüências. Já se tornou clichê a idéia da dupla identidade, mas com Cronenberg a história ganha um clima diferente: trilha sonora à la trash movie-80's, violência e vísceras explícitas, ainda que em seqüências rápidas e não estilizadas e um clima de David Lynch, com personagens esquisitos, como o irmão de Tom, interpretado por William Hurt. O apagamento dos rastros da história (o título original é "A history of violence") é a tentativa frustrada de não querer mostrar à sociedade tudo o que, de fato, existe. Como apagar é quase sempre impossível, sobrepõem-se novas camadas. Entretanto, se o que é forte estiver por baixo, um dia há de vir à tona, fazendo brotar toda a sujeira humana, tudo o que incomoda, como na cena em que uma mosca tenta sair do quarto através da janela enquanto lá fora o sangue corre solto. A mosca é uma alusão ao podre que ela representa e ao asco que temos dela, assim como é referência ao clássico A mosca (1986), do mesmo diretor, em momento doppelgänger (dupla personalidade) levado ao extremo. Em Marcas da violência, a delimitação entre Tom e Joey é mais ambígua e sutil, até porque ambos são exatamente a mesma pessoa física, e não um homem que se transforma num homem-mosca. E quem assistiu ao filme e embarcou na tese de Cronenberg, entende e contextualiza palavras como cumplicidade e conivência. Como explicar o sofrimento e o ódio da mulher e do filho de Tom evoluindo para a aceitação do chefe da casa, à cabeceira da mesa de jantar, depois deste acertar as contas com o passado? Em 'acertar contas com o passado' leia-se exterminar pessoalmente todos os que estão ligados à sua parte Joey. Isso só comprova que, vinte anos passados, Tom não mudou. Ainda é e continuará sendo lobo em pele de cordeiro. É Tom, mas é também Joey. Tenta destruir os rastros de Joey, mas se utiliza da própria violência característica dele. Não pode, portanto, se apagar. É a velha frase 'o passado me condena'. Agora, saindo da Avenida Almirante Barroso, um vento quente sobe de uma das galerias subterrâneas. Algo respira por baixo de tudo o que está visível nessa cidade. Para cada Tom, é provável que haja um Joey.

Marcas da violência (A history of violence) 2005, EUA, 96min
Direção: David Cronenberg
Roteiro de Josh Olson, baseado no enredo da HQ de John Wagner e Vince Locke Elenco: Viggo Mortensen, Maria Bello, Ed Harris, Willliam Hurt

OS AMANTES, de LOUIS MALLE


No dia de encerramento da mostra Eros, na cinemateca do MAM, o filme escolhido tem o mérito de ser um trabalho de grande qualidade, além de historicamente polêmico à época de seu lançamento, em 1958. Foi censurado em alguns países, incluindo França e Brasil. Eu ainda não estava no planeta neste ano, mas em tempos recentes lembro-me de ter assistido ao seriado "Engraçadinha, seus amores e seus pecados", na TV Globo. E mais especificamente, me recordo do personagem do ator Paulo Betti, um homem casado que investia feito um lobo mau na ninfeta Engraçadinha. Entre outras safadezas, o personagem falava aos sussurros de um filme em cartaz que estava causando frisson na juventude e que as donas de casa, em nome da moral e dos bons costumes, estavam execrando: um tal de Os Amantes. Bastou isso para eu ser tomado por uma onda contagiosa de pessoas que mitificavam o filme, assim como parece ter ocorrido naquela época. Os Amantes, do francês Louis Malle, apresenta a história de Jeanne Tournier, mulher de Henry, o dono de um jornal em Dijon, no interior da França. Como bem sabemos, ser mulher ou marido de jornalista não é tarefa fácil. Naquela época já não era. Jeanne prefere, portanto, os agitos, as modas e os amigos de Paris à vida entediante com um marido que não lhe dá a mínima. Na capital, ela mantém um relacionamento amoroso com o jogador de pólo Raoul. Jeanne conta com a cumplicidade da amiga Maggy, um álibi para suas constantes idas à Paris. No entanto, o marido, desconfiado, propõe à mulher um jantar com a presença de Maggy e Raoul, que aceitam o convite e seguem para Dijon. Jeanne dirige sozinha seu carro também para Dijon, mas pára na estrada por problemas mecânicos. Enquanto os convidados aguardam a chegada da anfitriã, esta, ainda na estrada, consegue uma carona com o arqueólogo Bernard. Lá, Henry oferece uma noite de hospedagem a Bernard em retribuição à gentileza prestada. Acontece que, à mesa de jantar, a despeito da momentânea falta de luz que deixa os convidados na escuridão, Jeanne começa a perceber o esquema ridículo a que está submetida e pensa consigo, acompanhando, agora em igualdade, o narrador onisciente que já existia desde o início do filme: "um amante ridículo", "pensava estar num drama, mas estava comédia". Isso mesmo, um amante frouxo que poderia ser interessante em Paris, mas que ali é domesticado pelo arquiinimigo Henry. Durante a madrugada, vai ao jardim para refrescar a cabeça e encontra Bernard. Ele investe sobre ela, que resiste por pouco tempo. Horas depois, estarão vivendo uma história de amor. Crítica aos valores burgueses como o status profissional e social (Bernard detesta toda a futilidade dos presentes, assim como é menosprezado por essa gente) , ao casamento e ao próprio ato de esvaziar o caráter transgressor de uma relação entre amantes, institucionalizando-a, levando o amante à própria casa e tornando-o peça orgânica daquele esquema hipócrita. Jeanne e Bernard seguem, literalmente, num barco sem rumo, num leito de amor itinerante, sem destino e sem preocupação com o prazo de validade. É verdade então que o amor chega de assalto, como um forasteiro. Os Amantes é, pois, a subversão da subversão. O amante do amante do amante. A terceira margem do rio. Isso ficou mais latente para mim do que a aparição de parte do seio de Jeanne Moreau. A atriz está um esplendor. Tão boa quanto em Mata Hari e muito melhor que em Ascensor para o cadafalso e A Noite. A fotografia é de Henri Decae, que fez também Ascensor..., do Louis Malle, e o excepcional Os incompreendidos, do meu cineasta-poeta preferido François Truffaut. Ao fim, o casal segue num carro, sem destino, já que o próprio narrador, em off, diz não saber onde a história vai dar. Mas o que importa é que ela foi muito bem contada.

Os Amantes (Les Amants) 1958, França, 88min, P&B
Direção: Louis Malle Roteiro: Louis Malle, Louise de Vilmorin
Elenco: Jeanne Moreau, Alain Cuny, Jean-Marc Bory, Judith Magre, Jose-Luis Villalonga

A NOIVA-CADÁVER, de TIM BURTON e MIKE JOHNSON



O que se diz por aí é que Tim Burton persistiu tanto em seus filmes que acabou por criar estilo inconfundível. É verdade. Nada tenho a acrescentar a esse dado. Entretanto, por mais que haja coerência ou mais do mesmo, como querem os que não gostam do diretor, devo confessar que continuo sendo surpreendido a cada filme. Em A Noiva Cadáver há uma série de elementos burtonianos (não sei se este termo existe) como o gótico, o fantástico e a presença de Johnny Depp, que estão também em filmes como Edward, mãos de tesoura, A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça e, mais recentemente, a releitura de A Fantástica Fábrica de Chocolate. A despeito de todas as ferramentas que se repetem em cada filme, Tim Burton, em co-direção com Mike Johnson, consegue inovar e prender o público que vai assistir aos 80 minutos da fantástica história, baseada no folclore russo, de Victor Van Dorf, um filho de novos-ricos que está prometido a Victoria, filha de aristocratas em decadência. No ensaio para o casamento, sob a autoridade de um severo pastor anglicano, Victor não consegue repetir a declaração que terá de fazer à noiva no grande dia. Depois de fugir da igreja durante o teste, caminhando por uma floresta tenebrosa, Van Dorf repete todo o discurso e acaba por acordar do túmulo Emily, a noiva que fora assassinada pelo ex-futuro marido antes do enlace. Desperta, ela crê que Victor é o noivo que veio libertá-la e o leva para o mundo dos mortos a fim de promover o casório da dupla vivo-morta. Curiosamente, a oposição entre mortos e vivos é invertida e destoa da corriqueira idéia de que o além é sempre assustador. Aqui, no nosso mundo, impera um tom solene acompanhado de um constante cinza de cenários, personagens e humores, como de fato é, e lá, uma festa de cores e irreverência. Outra opção interessante é a de desviar, mais para o fim, o foco de atenção de Victor para Emily (por mais que o filme leve o título noiva-cadáver, a tendência poderia ser a de privilegiar e centrar a narrativa em Victor. Por ser personagem masculino, por ter a voz de Johnny Depp e, por que não, por ser de nosso mundo e, logo, se aproximar mais de nossa compreensão), mostrando as reações, a vingança e o destino da noiva-cadáver. Neste filme, Tim Burton volta às origens da carreira de animador, que começou nos estúdios da Disney, em 1982. Utiliza a técnica de stop-motion - a filmagem quadro a quadro de cada cena dos bonecos feitos de aço inoxidável e recobertos de silicone - já adotada em O Estranho Mundo de Jack, em 1993, na contra-maré de desenhos feitos inteiramente por computação gráfica. Talvez o comentário soe engraçado para um desenho de animação, mas até o trabalho de fotografia se faz notável e merece destaque. Como não podia deixar de ser, a voz de Victor é dublada por Johnny Depp, sem falar na semelhança de traços entre o personagem e o ator. Extra filme o que fica? A certeza de que Tim Burton consegue sucesso entre pipocas e cults. Tese radicalmente comprovada pela pesquisa de campo do antropólogo informal aqui (rsrsrs), na fila do Odeon, onde vejo adolescentes (de roupas, botas e tênis pretos, acessórios de metal, olhos pintados à la Edward mãos-de-tesoura) que mais parecem estar num show da Pitty e adultos e pseudo-adultos com olhar blasé (alguns com óculos retangular de armação preta, camisa quadriculada, tênis all star) como que entrando num Paissandu ou Estação Botafogo da vida. Em comum, a espera ansiosa para assistirem ao mesmo filme e a satisfação com o resultado, na saída.

A Noiva-cadáver (Corpse bride), 2005, Reino Unido, 80 min
Direção: Tim Burton e Mike Johnson
Animação com as vozes de Johnny Depp, Helena Bonham Carter, Emily Watson, Albert Finney, Chistopher Lee, Joanna Lumley

PLANO DE VÔO, de ROBERT SCHWENTKE



Um convite para assistir a um filme-pipoca em pleno dois de dezembro, feriado dos mortos, num tempo enlouquecido feito esse que cariocas já estamos nos acostumando soa para mim como programa de índio, intriga internacional ou, em alguns casos, como ofensa pessoal, mas não é este o caso. Não sei se por preconceito ou por ter sido apresentado ao mundo inteligente fora de Hollywood (venhamos e convenhamos que até mesmo os fãs da indústria cinematográfica americana sempre sabem o final do filme assim que vêem o cartaz na porta do cinema). Mas meus amigos não conspiravam contra mim. Conspiração mesmo foi a vivida por Jodie Foster. Com vocês, no telão: Plano de vôo. Ah, mas antes disso, é claro, tenho que falar do que vem antes, obviamente. E o que vem antes num cinema pipoca??? Ganha uma pipoca quem adivinhar... Uma enxurrada de traillers, é claro. Uns cinco costuma ser a média. Precisam ser impactantes pra fazer com que as pessoas esqueçam da comida e do refrigerante. E precisa ter corte ágil, som alto, frases de efeito entre as cenas e muita adrenalina, mas muita mesmo, a ponto de eu achar que posso ter um ataque cardíaco a qualquer momento tamanho é o exagero. Depois disso, ninguém dorme. Pelo contrário, quando vem o silêncio, a trilha sonora, digamos... hmm... diegética, aquela que não é do filme, mas das poltronas, se manifesta com maior intensidade: mãos nervosas não se intimidam no embate com os sacos de pipoca. Agora sim, o filme. É como eu disse, todo mundo sabe o final. O que interessa é saber como Jodie Foster se sai em uma hora e cinqüenta minutos. E se sai bem. É legal ver que a atriz envelheceu. E convence como a mãe que tem a filha seqüestrada num avião com 400 passageiros que segue de Berlim para Nova York e leva, entre outras coisas, o corpo do marido, que caiu do telhado num acidente. É claro que no primeiro susto, quando a menina some antes do embarque, no saguão do aeroporto, sabemos que não é daquela vez, que a intenção é colocar os espectadores em alerta, tanto é que a música cresce em dramaticidade. Esse é mais um chavão do cinema comercial americano. Mas o roteiro desenvolve bem a trama: no jogo de empurra para definir quem é o seqüestrador, a paranóia americana pós-11 de setembro mira o alvo no primeiro árabe que encontra no avião. Felizmente, para se livrar do tom preconceituoso e da obviedade, a resposta não é essa. Depois tem se a sensação de que há um plano que envolve mais pessoas. Cresce também a possibilidade de que Kyle (Jodie Foster) esteja sofrendo alucinações. O avião, que já era um tanto claustrofóbico, vira um pandemônio quando Kyle decide revirar tudo e todos para encontrar a filha. A despeito da trama interessante, o final é previsível. Mesmo assim, saio pensando que não é tão fácil resistir a um filme do esquemão. Viva o filme pipoca, viva o filme cult, viva a diversidade! O que não dá é sair do cinema e encontrar a mesma chuva de quando entrei. O centro consegue ficar ainda mais vazio do que já é em feriados e domingos e eu tenho que me arriscar na arte de andar pelas ruas do Rio de Janeiro pulando poças, fugindo de goteiras e cuidando para não dar de frente com suspeitos. Tudo pelo cinema, seja ele qual for.

Plano de vôo (Flightplan), 2005, EUA, 110 min
Direção: Robert Schwentke
Elenco: Jodie Foster, Peter Sarsgaard, Sean Bean, Marlene Lawston, Erika Christensen, Kate Beahan

terça-feira, outubro 25, 2005

GAROTOS DE PROGRAMA, de GUS VAN SANT



Nuvens passam. E passam. E novamente. Em momentos diferentes. Gus Van Sant gosta de filmar o céu com a passagem das nuvens. Fez isso também em Elefante. Será isso algo reflexivo? Ou somente uma elipse, um pulo temporal? Que seja, mas o assunto 'tempo' é também um gancho para falar da minha relação com o filme de Van Sant. É que quando cheguei ao MAM, li no cartaz que o filme programado, por problemas técnicos, fora cancelado. Em seu lugar seria exibido Garotos de Programa. Volto então ao passado e lembro que assisti ao filme, pela primeira vez, em 1997. Naquele ano, meu pai assinara a TV à cabo. Me vi feliz, mas perdido naquela profusão de filmes. Na ânsia de querer conhecer a filmografia mundial, virava noites assistindo dos clássicos aos modernos. As horas de sono que se estendiam até às 11h - horário de acordar para ir à escola - eram reflexo da ressaca, da vida vampiresca de ir dormir às cinco, seis horas da manhã. Eu não me queixava. Sabia que filmes com títulos pouco ortodoxos só seriam mesmo exibidos no horário em que as crianças já estivessem dormindo. Sem falar nos 'midnight movies' de nomes tão insuspeitos que nada tinham de submundo até que começassem a ser exibidos. Quando assisti à Garotos de Programa, ainda entrando na adolescência, pouco entendi e pouco lembro do que ficou. De mim e do filme. Creio que seja mais ou menos assim nossa relação com a arte, ela permanece ao passo que, com o acúmulo de experiências na vida, nossas releituras se modificam (acabei de ter um baque com a recente releitura de O Estrangeiro, do Camus, feita, pela primeira vez, há uns seis anos). Dessa vez, sentado numa poltrona de uma cinemateca, irremediavelmente acometido pela doença da cinefilia que começava a nascer naquela época, as impressões são a de uma história de uma figura melancólica, tanto na ficção quanto na vida real. No plano da realidade, a morte causada por overdose do ator River Phoenix, o menino loirinho do belo Conta comigo (Stand by me, 1986, de Rob Reiner), em 1993, dois anos após o lançamento de Garotos de Programa. Na ficção, Mike, o deprimido personagem de Phoenix, cuja vida marginalizada e com um futuro inevitavelmente previsível só me desperta uma estranha indiferença e um sentimento de piedade pelos mais fracos. Talvez seja ele alguém que não devesse ter nascido. De certa forma, o meu olhar sobre o personagem é alterado pelo suicídio na vida real, torna-se difícil dissociar arte e vida de River Phoenix ao pensar no quanto o personagem o influenciou e no quanto de verdade havia de River Phoenix naquele personagem. Há uma impossibilidade anunciada por Scott (Keanu Reeves) quando diz que Mike não pode ser garoto de programa se tem narcolepsia e desmaia todas as vezes em que está de frente para um cliente prestes a mergulhar com devassidão no jovem corpo. Há uma impossibilidade de construir sua trajetória de vida se não conhece o pai e não consegue descobrir onde se encontra a mãe, ainda que se desloque ou seja levado em estado de letargia para vários lugares, à sua procura. Há impossibilidade de viver depois de declarar seu amor por Scott - o amigo playboy e rebelde sem causa que faz programas para passar o tempo - e ser descartado. Falta a ele, pois, o passado e o futuro. E é melhor que viva num presente deplorável, mas eterno, de modo que viva um dia após e pior que o outro, esquecendo o dia anterior e deixando de pensar no dia seguinte. O clima datado 'fim dos anos 80', com direito à música de Madonna, num bar, me joga, por instantes, em tempo e lugar que não vivi, mas que sei: não voltarão. Percebo que me falta falar muito mais do filme, como, por exemplo, a participação de Shakespeare no roteiro, 'in memoriam', é claro. E, no final das contas, quase tudo na vida fica 'in memoriam'.

Garotos de Programa (My Own Private Idaho), 1991, EUA, 114min
Direção: Gus Van Sant
Roteiro: Gus Van Sant / trechos de Henrique IV, de William Shakespeare
Elenco: River Phoenix, Keanu Reeves, James Russo, William Richert, Udo Kier

quinta-feira, outubro 20, 2005

A PROFESSORA DE PIANO, de MICHAEL HANEKE



Pela primeira vez visitei a Cinemateca do MAM. Eu corria para chegar às 16h, horário da sessão de Filme de Amor, do Júlio Bressane. Não consegui chegar a tempo do filme. Mais uma tarde ensolarada de domingo eu saíra para ver um filme e me atrasava. Chegando por volta das 16h30, fui procurar a cinemateca. Seguindo as placas informativas, me encontrava agora num corredor escuro, ouvindo sons que, com certeza, vinham de uma sala de projeção. Lá, vi pessoas sentadas, iluminadas pela luz da tela. Olhei para o foco de atenção destas pessoas. Via, em preto e branco, uma mulher, vestindo somente uma calcinha, que se abaixava mostrando a... o... digamos, derrière ao personagem da cena, que estava em contra-plano, e ao público. E a mim, por que não? Justamente no momento em que olhei para a tela! Saí, em seguida, com a sensação da cinefilia. Senti-me duas vezes voyeur por admirar aquela linda cena e por espiar espectadores que espiavam. A propósito, algumas teorias do cinema nos colocam, espectadores, como o sujeito que espia a tela. Por isso, o escurinho do cinema para que os atores não nos vejam (herança de algumas teorias teatrais). Apesar de não ter assistido este Filme de Amor, lá permaneci a fim de entrar na sessão das 18h. Eu não sabia que, ao entrar na sessão de A Professora de Piano, me depararia com uma personagem também voyeur. Erika, a professora de piano do título, refugia-se em cabines de filme pornô para revirar a cesta de lixo à procura do líquido expelido do prazer masturbatório dos homens que por ali passam. Também ela duplamente voyeur por catar papéis sujos de esperma e imaginar naquela cabine os homens assistindo à mesma cena que agora ela assiste. A Professora de Piano é erótico (incluído na mostra Eros, da cinemateca) e, portanto, bem mais complexo do que os filmes de sexo puramente carnal. Erika, uma mulher que talvez caminhe para os quarenta anos de vida, ainda mora com a mãe. Uma mãe muito rigorosa com os horários da filha. E uma filha que exerce uma profissão igualmente rigorosa e que exige dos alunos a precisão racionalista que envolve o executor de um Schubert, para ficar no músico-virtuose preferido da professora. A distante relação aluno-professora, no entanto, tenta ser rompida por um estudante mais ousado. Erika, que se mostrava ainda mais resistente com as investidas, acaba por ceder. Daí, o filme se desvela: toda uma imagem de contenção vai por água abaixo quando a mulher se revela sedenta pela transgressão sexual, assustando o aluno que tentava quebrar a casca de noz. O grande achado do filme é contrapor um jovem bonito, mas inexperiente talvez, na arte do amor por desejar uma relação simplificada papai-mamãe e uma mulher que teoriza suas vontades de transgressão moral e sexual a dois através de uma carta dada ao rapaz. O que parece evidente é a longa espera de Erika por alguém que atropelasse todos os bons modos que ela mostra aos outros. O que me surpreendeu é a frieza com que o diretor encaminha a história, a fotografia correta e criativa, a atuação de Isabelle Huppert, que parece estar sempre procurando algo além da tela e, portanto, do nosso campo de visão e a sobriedade musical. No final, não sabemos se Erika consegue dar cabo da própria vida porque ela escapa, ferida, do quadro planejado pelo diretor. Este, fugindo do modelo cinema-convencional, deixa a personagem seguir e fixa a câmera na fachada da escola de música. Decisão bem tomada. Pelo sim, pelo não, os créditos finais de um filme percorrido por Beethovens, Schuberts e Schumanns são silenciosos.

A Professora de Piano (Le Pianiste) , França / Áustria, 2001, 135 min
Direção: Michael Haneke
Roteiro baseado na novela de Elfriede Jelinek
Elenco: Isabelle Huppert, Benoit Magimel, Annie Girardot

terça-feira, outubro 04, 2005

GARGANTA PROFUNDA, de GERARD DAMIANO estrelando LINDA LOVELACE


No Festival do Rio, o cine Palácio ficou encarregado de boa parte da Mostra Midnight Movies, uma seleção de filmes que têm como temática a interessante e curiosa bizarrice humana. Maníacos, extravagantes e tudo o mais se encontram naquela sala. Na tela e nas poltronas. Como não sou exceção, em plena tarde de sábado, eu entrava no cinema para assistir talvez ao maior clássico do cinema pornô: Garganta Profunda, estrelando Linda Lovelace como Linda Lovelace, assim aparecia nos créditos iniciais. Antes disso, porém, começou a ser exibido um documentário que ninguém sabia dizer a procedência. Conferi o bilhete para ver se não havia comprado, por engano, a sessão Entrando na Garganta Profunda, um documentário sobre o impacto cultural do filme, na década de 70, nos EUA. Não. No meu ingresso e no de todos estava lá aquele título instigante e, imediatamente, entendido com certo ar de riso (para quem nunca ouvira falar do filme): Garganta Profunda. O público não queria documentário coisíssima nenhuma. Queria sim ver o sexo na tela grande. Fetiche, fazer o quê. As luzes então se acendem, entra uma mulher da organização do festival tentando esclarecer que o que estamos vendo é um curta-metragem a respeito do filme e que o dito cujo viria em seguida. Lá atrás, ninguém ouve nada do que ela diz até que um sujeito grita: "Fala mais alto pra eu ver se eu ouvo (seu ovo)!". Piadinha pertinente para o filme que se esperava e não seria necessário dizer que o cinema veio abaixo. A mulher, irritada, foi para o fundo do cinema e explicou tudo de novo: Ahhhh, bom! Agora sim, Linda Lovelace como Linda Lovelace entra em ação. E ela é ela mesma porque o diretor explicou, no documentário que quase foi espinafrado pelos pornófilos da sala, que a garganta profunda é fato. Experiência própria, segundo ele. No filme, a habilidade da mocinha vai sendo provada e aprovada por um sem número de homens, mas só é legitimada depois de o Dr. Young, um médico safadinho, descobrir que Linda não sente prazer durante o sexo vaginal porque seu clitóris está na garganta. Por conta disso, Linda procura um homem que tenha um dote de 20 centímetros, de modo que alcance o tal ponto de prazer e deixe a mulher a soltar foguetes e ver os sinos baterem, como ela própria afirma querer. Enquanto ela não encontra o bem-dotado, o Dr. Young faz a festa dele e a dos outros, contratando Linda como terapeuta para atender em domicílio aos marmanjos que estão dodói. Nas horas vagas, ela satisfaz o patrão que, enquanto faz saliência, registra os diversos casos de cura de seus pacientes decorridas do fenômeno da garganta profunda. A trilha sonora é um primor: músicas, ohh, tão românticas! Uma delas repete o tempo todo "deep throat, deep throat..." num coro tão singelo que dá até vontade de chorar (com duplo sentido, por favor)! Brincadeiras à parte, Garganta Profunda é um clássico do cinema pornô e é pena que hoje não se contem histórias interessantes nos filmes do gênero. Além de ter sido mais relegada do que já era, a produção desse tipo de filme vai desaparecendo dos cinemas. Pra confirmar a fama de cinema-inferninho que o Palácio tem, numa das cenas mais quentes, entra uma negona-grandona-fortona para verificar se tem alguém muito empolgado na poltrona fazendo coisa indevida, sozinho/a ou acompanhado/a. Vai ver alguém anda querendo bater o recorde da Lovelace, que morreu em 2002 e precisa ser substituída. Quem se habilita?

Garganta Profunda (Deep Throat), 1972, EUA, 73 min
Direção e Roteiro: Gerard Damiano
Elenco: Linda Lovelace, Harry Reems, Dolly Sharp, Bill Harrison

sábado, outubro 01, 2005

EROS, de ANTONIONI, SODERBERGH e WONG KAR-WAI


Nostalgia. Quando pensei em Wong Kar-Wai foi essa a palavra que me veio à mente. Lembrei de outros filmes dele. Personagens sofríveis e apaixonantes. O filme de agora, dentro do primeiro dia do Festival do Rio 2005, é Eros, um longa com três histórias dirigidas por homens de filmografias distintas: a primeira é The Dangerous Thread of Things, do cultuado italiano Michelangelo Antonioni: Na Toscana, um casal que se apronta para sair deixa, logo de início, para o espectador, a percepção de uma crise conjugal. O homem se envolve com uma moradora local. O filme, bastante econômico tanto na duração quanto nas ações e palavras, não sente a necessidade de explicar e isso é bom. No final, a amante do marido dança nua e solitária à beira do mar até que Cloe, também nua, se aproxima da mulher, que agora está deitada na areia, e projeta a sombra de seu corpo num outro corpo nu. O encontro dos corpos. Não há música. Poucos sons. Mais tempo para reflexão. Corte. O diretor Steven Soderbergh filma Equilibrium. Robert Downey Jr. é um publicitário que procura um analista para decifrar seu sonho constante com uma mulher que ele não consegue identificar. Toda a cena do consultório é desconstruída por um analista que não tem o mínimo interesse no paciente e pelo paciente que descobre por si mesmo o motivo de tanto atordoamento. Inteligente construção de cores: P&B para o consultório e um azul estonteante para o quarto, os móveis e a luz construída no sonho. Também no sonho, uma câmera pendular e um belíssimo 'jazz cubano' dão o tom perfeito para a cena. Corte. No episódio The Hand, de Wong Kar-Wai, um alfaiate se apaixona pela cliente, uma prostituta de luxo. Um homem que nunca tocou uma mulher não pode ser um alfaiate, diz ela. Ele obedece. Ela o inicia com as mãos. Com as mãos, ele trabalha anos para ela. É somente pelas mãos que ele conhece as medidas exatas do corpo da mulher. Aqui, há muito mais o desejo que o prazer. Há privações e limites corporais conhecidos numa prostituta, como a regra do não beijar. Mas também a impossibilidade de um amor sentido por ele que não pode ser consumado não se sabe por que razão. A prostituta simplesmente não enxerga além das mãos que cuidam para que esteja sempre bela para outros. A melancolia dos personagens, os ambientes lúgubres e a música suave são um convite às lágrimas. Inevitável. Comum aos três filmes, a paixão dos corpos. Parafraseando Manuel Bandeira, os corpos se entendem, as almas, não. Na abertura de cada uma das três histórias, desenhos de corpos se movem suavemente em texturas vermelhas, amarelas, azuis, pretas... Nessas aberturas, uma música que, ainda agora, me toma a concentração: "Michelangelo Antonioni", cantada, numa voz ecoada e envolvente como um canto de sereia, por Caetano Veloso ("visione del silenzio / angolo vuoto / pagina senza parole / una lettera scritta sopra un viso / di pietra e vapore / amore / inutile finestra" do disco Noites do Norte). Nos créditos, as pessoas aplaudem o nome de Caetano. Meu aplauso vai para tudo que vi, ouvi e senti desde quando as luzes se apagaram. Saio do Paissandu conversando com meu amigo sobre a geração de cinéfilos que o mítico cinema formou, principalmente, na década de 60. Na saída, encontro de velhos e jovens, chão molhado da chuva que já passou, trânsito, metrópole. Num bar ao lado, uma mulher, acompanhada de um homem, toca, melancolicamente, um xilofone. De novo, nostalgia. Seguimos.

Eros, Hong Kong/EUA/Itália/China/França/ Luxemburgo/Inglaterra, 2005, 100 min
Direção: Michelangelo Antonioni, Steven Soderbergh, Wong Kar-Wai
Roteiro: Michelangelo Antonioni, Tonino Guerra, Steven Soderbergh
Elenco: Gong Li, Chang Chen, Alan Arkin, Luk Auntie, Christopher Buchholz, Robert Downey Jr., Ele Keats

domingo, setembro 18, 2005

GRITOS E SUSSURROS, de INGMAR BERGMAN





Vem atrasado um texto sobre mais uma das minhas idas ao cinema. Duas semanas se passaram desde o último dia do mês de agosto. A quarta-feira, dia da sessão cineclube no Odeon, poderia ter sido mais cinematográfica não tivesse eu dormido na poltrona aconchegante, porém mal-cheirosa, do cinema da Casa França-Brasil, enquanto assistia ao novo filme da diretora argentina Lucrecia Martel, Menina Santa. Não posso, portanto, emitir a mínima opinião sobre o cinema argentino se precisar tomar como referência Menina Santa. Dessa vez, a culpa não foi do filme, mas minha. Minha insistência, que lutava contra o sono perdurável desde o momento que acordei, passando pela nada empolgante aula de ética profissional, me deslocou para o centro. Também o medo de que o filme argentino saísse do circuito levou-me à sala. Isso me traz à cabeça algo que tenho pensado constantemente: na voracidade de ver muitos filmes, acabo perdendo o tempo de ruminá-los e, não raro, durmo nas poltronas ora vermelhas, ora azuis. O saldo positivo do sono foi a recuperação que tive para esperar por quase duas horas o início da sessão das 20h30, no Odeon. Bem, a sessão cineclube nunca começa no horário. Na verdade, o atraso foi de quase meia hora. Valeu a espera para assistir Gritos e Sussurros, do sueco Ingmar Bergman. Era a primeira vez que via um filme do diretor na tela grande, o que confere, ao menos para mim, um crédito especial à sessão. Dos resquícios que busco na cachola, o que mais salta à esta página é algo não descritivo, mas visual: por um instante feche os olhos e contamine todo o negro diante da visão com a cor vermelha. Pois bem, essa é a sensação que o nome Gritos e Sussurros me traz num primeiríssimo momento. Talvez porque as sensações visuais exerçam fixação maior sobre nossa memória, mas não é só por isso. É porque o ambiente claustrofóbico das três irmãs e empregada que agonizam, seja o sofrimento do corpo ou o psicológico, esse ambiente é vermelho, esse ambiente tem sofás, tapetes, cortinas pesadas, aveludadas e vermelhas. Porque é vermelho, e não preto como se costuma ver no cinema, o efeito fade (fusão de imagens na passagem de cenas, aquele efeito em que as imagens vão se apagando enquanto outras vão surgindo). O fade (alternativo ao corte seco) quase sempre expressa uma passagem de tempo longa, uma elipse. Essa passagem de tempo longa é a agonia das mulheres presas a alguma força desconhecida. Há no ar a frieza nórdica e o sofrimento interiorizado das personagens. Há um relógio que bate do início ao fim do filme por diversas vezes, independente de quem esteja para morrer, nos dizendo que o tempo é cruel. Há um número de closes bem maior do que geralmente se pede na cartilha da linguagem cinematográfica mais tradicional. Talvez paradoxalmente, há muitos closes, mas não há melodrama. Bergman é sádico, frio e manipulador das faces delicadas, como a de Liv Ullmann (que ilustra a foto colorida), por exemplo. Confina as atrizes num limitado espaço cênico na espera de uma explosão de raiva, medo e sentimento. Relógios que não cessam de badalar, música soturna de Bach e Chopin, cômodos que quase não recebem a luz solar, terror que a câmera nem sempre capta, mas faz o espectador sentir. É assim que senti este filme de Bergman. As luzes se acendem e as pessoas se retiram caladas. O silêncio. A tensão. O silêncio. Atenção.

Gritos e Sussurros (Viskningar Och Rop), Suécia, 1972, 90 min
Direção e Roteiro: Ingmar Bergman
Elenco: Liv Ullmann, Harriet Andersson, Kari Sylwan, Ingrid Thulin

segunda-feira, setembro 05, 2005

SÃO BERNARDO, de LEON HIRSZMAN





Conversa-se na fila do banco, também na fila do ônibus. Na fila do mercado, às vezes. Inventa-se um assunto para acelerar a passagem do tempo. Na fila do cinema, no entanto, permanece a ausência da fala, do olhar. Isso não é bom, mas é uma constatação que ocorre nos circuitos que freqüento (Odeon, CCBB, por exemplo), onde a oferta de filmes é voltada para o cinema de arte, de repertório e de outras décadas. Talvez a individualidade, o egoísmo praticado pelos cinéfilos tenha surgido nos primórdios da teoria do cinema, quando a sétima arte, então uma grande novidade, era espinafrada pelos conservadores que viam nela uma forma de alienação, de recepção extremamente passiva e não pensante. A imagem que tolhia a imaginação. O que o cinema fez foi se aproximar da literatura e tomar emprestado dela muitas das primeiras teorias que o consolidaram posteriormente. De quebra, levou o isolamento e algo cerebral do leitor intelectual ao espectador. A homenagem à tela é justa, mas confesso que sofro com a solidão dos circuitos apesar de já ter me habituado. Por isso, de vez em quando convido amigos para usufruir de uma sessão nostalgia. Filmes de 1920, 30, 40, 50, 60........ Na quarta, eu esperava uma companhia para a sessão cineclube do Odeon, para assistir à São Bernardo, de Leon Hirszman, filme cultuado por mim, mesmo antes de vê-lo. Infelizmente, houve um imprevisto, a companhia não pôde vir, mas não pude deixar de entrar na sala, ainda que só. Lá dentro, esqueço que estou só. Deixo minha cadeira cativa no fundo da sala e vou para um lugar mais próximo à tela. É o desejo de se sentir tomado pelo filme, ou de receber as imagens antes que elas cheguem fracas ao fim da sala, captadas que foram por outras tantas pessoas, como disse o cineasta Bertolucci, através de seu personagem Matthew, em Os Sonhadores. São Bernardo causa uma estranheza. Leon Hirszman não usou roteiro, o romance homônimo de Graciliano Ramos foi o guia inseparável do diretor. Por isso, às vezes tenho a sensação de estar no ambiente da literatura. Narra-se muito. E bem. E com muita beleza. Paulo Honório (em excelente atuação de Othon Bastos) escreve suas memórias, fala das suas conquistas, ora pela narrativa, ora pela encenação. Paulo Honório é um homem temperamental, bicho do mato. Paulo Honório faz dinheiro. Agora tem a fazenda de São Bernardo. Diz que não precisa de mulher, que mulher é bicho estranho. Encanta-se, no entanto, pela pureza de Madalena (Isabel Ribeiro), professora primária, mulher perspicaz, mas sem perspectiva. Vive com um salário miserável de professora. Escreve para jornais. Está ligada ao momento político no mundo. Mas assina sua sentença, casando-se quase à contragosto com Paulo Honório. A partir daí, perde a liberdade de expressão. Torna-se amiga de um professor, empregado de Paulo, e consegue expor suas idéias de igualdade, de generosidade. Defende os empregados da maldade do patrão. Paulo Honório não suporta a mulher que tem em casa porque ela não cabe em si, ela é inesgotável para aquele fim de mundo. Madalena não quer luxo, Madalena simpatiza com o socialismo. Encarna o ideal. Paulo Honório, um mascate no passado, agora destrata os empregados. Paulo Honório implode todos os ideais da Madalena socialista, toda a leitura primária e utópica de uma comunidade justa. A aridez de Paulo Honório destrói a poesia da mulher. No fim, vê o sofrimento de sua gente, vê a mulher, faz mea culpa "E se tudo voltasse novamente?", mas responde a si "Seria tudo igual de novo". O eterno retorno.

São Bernardo, Brasil, 1972, 110 min
Direção: Leon Hirszman
Roteiro: Leon Hirszman, baseado no romance homônimo de Graciliano Ramos
Elenco: Othon Bastos, Isabel Ribeiro, Nildo Parente, Vanda Lacerda, Mário Lago

segunda-feira, abril 25, 2005

A BELA INTRIGANTE, de Jacques Rivette

















Fui assistir à A Bela Intrigante, filme de Jacques Rivette, com a realmente bela e intrigante Emmanuelle Béart. Estava pensando em escrever a crítica seca para o novo blog, mas acho que o meio e as circunstâncias para se chegar ao cinema merecem exposição. Por exemplo, partir sozinho num domingo ensolarado para o centro da cidade. Centro vazio, Uruguaiana cheia de pivetes e eu apertando o passo para não passar pelo quinto assalto. No Bob's da Senador Dantas, um casal - um homem e um travesti - fazia algazarra do lado de fora e seguia para o cine pornô, na Alcindo Guanabara. Pego meu milk shake de morango e sigo só, para desembocar na Cinelândia, saindo pela lateral do Amarelinho, lugar onde comi a pior pizza da minha vida, que estava repleto de turistas europeus e norte-americanos. No Odeon, café cheio, mas sala de projeção vazia (menos de trinta pessoas). Também no Odeon, em plena exibição de Rivette - expoente da nouvelle vague francesa - tem barulho de saquinho de doce, de pipoca, sei lá o quê, tem frio (fazia calor do lado de fora, mas levei meu casaco) e tem... mosquito! Sim, essa praga que invadiu o Rio em época atípica. E esse maldito zumbido no meu ouvido e a Béart nua na tela, posando para o pintor. Na verdade, a Béart só se despe na segunda hora do filme. Há muito tempo para isso. Afinal, o filme tem quatro horas de duração! Isso provocou a quebra da regra número dois, que é não dormir no cinema. A regra número um é não sair da sala antes do fim do filme. Essa também quebrei há pouco tempo com a Idade da Terra, do Glauber e quase o fiz com O Signo de Leão, do Eric Rohmer, um dos filmes mais soninhos que assisti. Depois foi tranqüilo. Um filme sobre a pintura e a estética, mas que não reflete em sua linguagem nenhuma pretensão plástica além de um filme do cinema moderno francês. Simples e enigmático. Gênio, arte, pintura, beleza, nudez, mistério, desvelamento da privacidade da alma no interior da França. Quatro horas incansáveis, descontando as sonecas na primeira hora. Uma experiência válida. Por fim, saída apressada e passos largos para chegar rápido à Praça XV. Dúvida: escolher a rua para se chegar à Presidente Antônio Carlos e descer a rua do fórum. Opto pela Almirante Barroso. A Araújo Porto Alegre é deserta e já fui assaltado lá, em plena segunda-feira, às oito da noite, que dirá agora. Imagino depois que o jeans e a camisa branca fizeram o taxista que acabou de passar pensar que sou um garoto de programa peso pena. O carro passa e o bigodudo faz um convite. Passo batido. Ele faz o retorno e passa novamente por mim mandando um beijinho com seu bigodão saliente. Nessas horas é inevitável a lembrança do Rubem Fonseca com suas histórias de mendigos, gays, prostitutas e toda a sorte de habitantes do pulsante e subversivo centro do Rio. Deixando pra trás esses habitantes, chego à Praça XV. O ônibus não está lá. Acabara de sair. Enquanto espero, tenho tempo para ler (em pé), atender o celular para bater papo com a ex-namorada e acertar para o domingo um almoço entre eu, ela e uma amiga. Ainda dá tempo de reclamar do ônibus com as pessoas da fila e repetir sempre o meu discurso de que a prefeitura é a mais incorreta por manter a concessão de exploração do trajeto por esses empresários de ônibus, filhos da máfia italiana que só pensam no lucro e na vendetta. No final do dia, a frase do Godard, que tirei do contexto, se aplica a mim: "ir ao cinema dá uma sensação de se fazer parte do mundo".

A Bela Intrigante (La Belle Noiseuse), França, 1991, 228 min
Direção: Jacques Rivette
Roteiro: Pascal Bonitzer, Christine Laurent e Jacques Rivette
Elenco: Michel Piccoli, Jane Birkin, Emmanuele Béart, Marianne Denicourt