domingo, setembro 18, 2005

GRITOS E SUSSURROS, de INGMAR BERGMAN





Vem atrasado um texto sobre mais uma das minhas idas ao cinema. Duas semanas se passaram desde o último dia do mês de agosto. A quarta-feira, dia da sessão cineclube no Odeon, poderia ter sido mais cinematográfica não tivesse eu dormido na poltrona aconchegante, porém mal-cheirosa, do cinema da Casa França-Brasil, enquanto assistia ao novo filme da diretora argentina Lucrecia Martel, Menina Santa. Não posso, portanto, emitir a mínima opinião sobre o cinema argentino se precisar tomar como referência Menina Santa. Dessa vez, a culpa não foi do filme, mas minha. Minha insistência, que lutava contra o sono perdurável desde o momento que acordei, passando pela nada empolgante aula de ética profissional, me deslocou para o centro. Também o medo de que o filme argentino saísse do circuito levou-me à sala. Isso me traz à cabeça algo que tenho pensado constantemente: na voracidade de ver muitos filmes, acabo perdendo o tempo de ruminá-los e, não raro, durmo nas poltronas ora vermelhas, ora azuis. O saldo positivo do sono foi a recuperação que tive para esperar por quase duas horas o início da sessão das 20h30, no Odeon. Bem, a sessão cineclube nunca começa no horário. Na verdade, o atraso foi de quase meia hora. Valeu a espera para assistir Gritos e Sussurros, do sueco Ingmar Bergman. Era a primeira vez que via um filme do diretor na tela grande, o que confere, ao menos para mim, um crédito especial à sessão. Dos resquícios que busco na cachola, o que mais salta à esta página é algo não descritivo, mas visual: por um instante feche os olhos e contamine todo o negro diante da visão com a cor vermelha. Pois bem, essa é a sensação que o nome Gritos e Sussurros me traz num primeiríssimo momento. Talvez porque as sensações visuais exerçam fixação maior sobre nossa memória, mas não é só por isso. É porque o ambiente claustrofóbico das três irmãs e empregada que agonizam, seja o sofrimento do corpo ou o psicológico, esse ambiente é vermelho, esse ambiente tem sofás, tapetes, cortinas pesadas, aveludadas e vermelhas. Porque é vermelho, e não preto como se costuma ver no cinema, o efeito fade (fusão de imagens na passagem de cenas, aquele efeito em que as imagens vão se apagando enquanto outras vão surgindo). O fade (alternativo ao corte seco) quase sempre expressa uma passagem de tempo longa, uma elipse. Essa passagem de tempo longa é a agonia das mulheres presas a alguma força desconhecida. Há no ar a frieza nórdica e o sofrimento interiorizado das personagens. Há um relógio que bate do início ao fim do filme por diversas vezes, independente de quem esteja para morrer, nos dizendo que o tempo é cruel. Há um número de closes bem maior do que geralmente se pede na cartilha da linguagem cinematográfica mais tradicional. Talvez paradoxalmente, há muitos closes, mas não há melodrama. Bergman é sádico, frio e manipulador das faces delicadas, como a de Liv Ullmann (que ilustra a foto colorida), por exemplo. Confina as atrizes num limitado espaço cênico na espera de uma explosão de raiva, medo e sentimento. Relógios que não cessam de badalar, música soturna de Bach e Chopin, cômodos que quase não recebem a luz solar, terror que a câmera nem sempre capta, mas faz o espectador sentir. É assim que senti este filme de Bergman. As luzes se acendem e as pessoas se retiram caladas. O silêncio. A tensão. O silêncio. Atenção.

Gritos e Sussurros (Viskningar Och Rop), Suécia, 1972, 90 min
Direção e Roteiro: Ingmar Bergman
Elenco: Liv Ullmann, Harriet Andersson, Kari Sylwan, Ingrid Thulin

segunda-feira, setembro 05, 2005

SÃO BERNARDO, de LEON HIRSZMAN





Conversa-se na fila do banco, também na fila do ônibus. Na fila do mercado, às vezes. Inventa-se um assunto para acelerar a passagem do tempo. Na fila do cinema, no entanto, permanece a ausência da fala, do olhar. Isso não é bom, mas é uma constatação que ocorre nos circuitos que freqüento (Odeon, CCBB, por exemplo), onde a oferta de filmes é voltada para o cinema de arte, de repertório e de outras décadas. Talvez a individualidade, o egoísmo praticado pelos cinéfilos tenha surgido nos primórdios da teoria do cinema, quando a sétima arte, então uma grande novidade, era espinafrada pelos conservadores que viam nela uma forma de alienação, de recepção extremamente passiva e não pensante. A imagem que tolhia a imaginação. O que o cinema fez foi se aproximar da literatura e tomar emprestado dela muitas das primeiras teorias que o consolidaram posteriormente. De quebra, levou o isolamento e algo cerebral do leitor intelectual ao espectador. A homenagem à tela é justa, mas confesso que sofro com a solidão dos circuitos apesar de já ter me habituado. Por isso, de vez em quando convido amigos para usufruir de uma sessão nostalgia. Filmes de 1920, 30, 40, 50, 60........ Na quarta, eu esperava uma companhia para a sessão cineclube do Odeon, para assistir à São Bernardo, de Leon Hirszman, filme cultuado por mim, mesmo antes de vê-lo. Infelizmente, houve um imprevisto, a companhia não pôde vir, mas não pude deixar de entrar na sala, ainda que só. Lá dentro, esqueço que estou só. Deixo minha cadeira cativa no fundo da sala e vou para um lugar mais próximo à tela. É o desejo de se sentir tomado pelo filme, ou de receber as imagens antes que elas cheguem fracas ao fim da sala, captadas que foram por outras tantas pessoas, como disse o cineasta Bertolucci, através de seu personagem Matthew, em Os Sonhadores. São Bernardo causa uma estranheza. Leon Hirszman não usou roteiro, o romance homônimo de Graciliano Ramos foi o guia inseparável do diretor. Por isso, às vezes tenho a sensação de estar no ambiente da literatura. Narra-se muito. E bem. E com muita beleza. Paulo Honório (em excelente atuação de Othon Bastos) escreve suas memórias, fala das suas conquistas, ora pela narrativa, ora pela encenação. Paulo Honório é um homem temperamental, bicho do mato. Paulo Honório faz dinheiro. Agora tem a fazenda de São Bernardo. Diz que não precisa de mulher, que mulher é bicho estranho. Encanta-se, no entanto, pela pureza de Madalena (Isabel Ribeiro), professora primária, mulher perspicaz, mas sem perspectiva. Vive com um salário miserável de professora. Escreve para jornais. Está ligada ao momento político no mundo. Mas assina sua sentença, casando-se quase à contragosto com Paulo Honório. A partir daí, perde a liberdade de expressão. Torna-se amiga de um professor, empregado de Paulo, e consegue expor suas idéias de igualdade, de generosidade. Defende os empregados da maldade do patrão. Paulo Honório não suporta a mulher que tem em casa porque ela não cabe em si, ela é inesgotável para aquele fim de mundo. Madalena não quer luxo, Madalena simpatiza com o socialismo. Encarna o ideal. Paulo Honório, um mascate no passado, agora destrata os empregados. Paulo Honório implode todos os ideais da Madalena socialista, toda a leitura primária e utópica de uma comunidade justa. A aridez de Paulo Honório destrói a poesia da mulher. No fim, vê o sofrimento de sua gente, vê a mulher, faz mea culpa "E se tudo voltasse novamente?", mas responde a si "Seria tudo igual de novo". O eterno retorno.

São Bernardo, Brasil, 1972, 110 min
Direção: Leon Hirszman
Roteiro: Leon Hirszman, baseado no romance homônimo de Graciliano Ramos
Elenco: Othon Bastos, Isabel Ribeiro, Nildo Parente, Vanda Lacerda, Mário Lago