domingo, abril 30, 2006

A LULA E A BALEIA, de Noah Baumbach


Lembro de ter lido há alguns anos uma crônica dessas que saem aos domingos, da Heloísa Seixas, que estabelecia dois pólos numa relação amorosa: o grande e o pequeno. Esporadicamente o grande se apequenava e o pequeno engrandecia-se. Como já se pode imaginar o grande era o sujeito cheio de si, independente, que, por sua vez, era o combustível do pequeno, cuja flexibilidade costumava ser uma de suas maiores características.

Em A Lula e a Baleia, Bernard, professor universitário, escritor, intelectual, cercado por todos os lados de mimos e situações que o colocam num patamar superior, é o grande. Joan, a pequena, é a mulher de Bernard e tenta publicar seu livro. O casamento de 17 anos, construído a base de muitos filmes e livros, produziu um marido imbuído de razão e uma mulher declaradamente sentimental e emotiva pelos casos extra-conjugais que não esconde de Bernard. A ruptura na relação divide também as opiniões dos filhos: Walt, de 16 anos, apóia e é fã do pai, o sujeito que manda e sabe das coisas, enquanto Frank, de 12 anos, o mais desprotegido tende para o lado de Joan. Na difícil fase em que Frank entra na puberdade e Walt, na idade adulta, ambos descobrem o sexo a seu modo: Frank, masturbando-se e livrando-se das secreções pelos armários da escola e nos livros da biblioteca e Walt em frustradas tentativas de ter a primeira transa. Acontece que o pequeno (no sentido de ser o mais novo e no sentido figurado da crônica), ao livrar-se de seus anseios amoralmente como faz a mãe, tem muito mais êxito que Walt, este aconselhado pelo pai a aproveitar a idade, experimentar muitas mulheres e não se prender a nenhuma delas. O que, de certa forma, explica a falta de tato e a indiferença de Walt às suas parceiras nos sucessivos relacionamentos superficiais. Para Joan, assumir relações com outros homens é respeitar o desejo próprio. Para Walt trata-se de não criar vínculos emotivos. Curiosamente, Bernard dá este tipo de conselho ao filho, mas nunca traiu a mulher. As mudanças bruscas na família e, particularmente, a instabilidade no novo cotidiano de Bernard provocam alterações comportamentais em Frank e de Walt, cuja entrevista com um psicólogo (depois de o jovem ter ganho um concurso na escola com uma letra de música do Led Zeppelin e não sua, como ele fizera todos acreditarem) traz lembranças da infância onde sua mãe tivera participação bem maior. Entre elas, as visitas ao Museu Americano de História Natural onde se encontra desde aqueles tempos uma gigante reprodução de uma lula agarrada a uma baleia.

O roteiro fluente e inteligente, com cortes dinâmicos que não dão espaço para a análise da sucessão de acontecimentos, está recheado de diálogos sobre literatura. Discute-se se o Dickens do "Conto de duas cidades" é tão grande quanto o Dickens de "David Copperfield" ou de "Grandes esperanças". O livro mais comentado é "A metamorfose" e aí está a metáfora da mudança que ocorre nas posições de Walt ao longo do filme. As referências ao cinema são muitas: desde os cartazes de grandes clássicos do cinema cobrindo as paredes das casas, passando pela lembrança da atriz Mônica Vitti que uma namorada de Walt suscita em Bernard e culminando na bela cena em que Bernard, numa maca, prestes a ser colocado na ambulância depois de um quase atropelamento, passa o polegar nos lábios e chama Joan de vadia, reproduzindo Jean Paul Belmondo, em Acossado, de Godard. Bernard reconstrói aí a memória afetiva dos filmes que assistiu com Joan.

Walt volta ao museu para constatar que a baleia, grande no tamanho, por mais que esteja se atracando com a lula, parece mesmo estar sendo sustentada por esta última, que costuma aparecer bem menos nas cenas da vida.

p.s.: talvez seja pela forte influência animal do filme (a lula, a baleia, a barata de Kafka) que um gatinho amarelo adentrou a sala do Artplex minutos antes do início da sessão. Como costumam dizer: "Fofo!".


A Lula e a Baleia (The squid and the whale), EUA, 2005, 80min Direção e roteiro: Noah Baumbach Edição: Tim Streeto Fotografia: Robert D. Yeoman Elenco: Jeff Daniels, Laura Linney, Jesse Eisenberg, Owen Kline, Halley Feiffer, Anna Paquin, William Baldwin

sábado, abril 15, 2006

Antes da Nouvelle Vague, no MAM

A cinemateca exibiu por três fins de semana alguns dos clássicos do cinema francês de 'antes da nouvelle vague'. Tudo bem que a nouvelle vague sacudiu o cinema francês no fim dos anos 50, mas daí a colocar o nome da mostra de "Antes da nouvelle vague" parece tirar de foco diretores importantes do cinema clássico francês, como Jean Renoir e Robert Bresson.





Um dos destaques é As Damas do Bosque de Boulogne (1945, França), do Robert Bresson. Coincidentemente o filme foi exibido há exatamente um ano, quando o CCBB fazia a mostra de filmes de temática feminina para comemorar o dia internacional da mulher. É bem isso mesmo: o filme trata da vingança feminina. Para se vingar do amante Jean (Paul Bernard) que a abandonou, Hélène (Maria Casares) arma-lhe um casamento com Agnès (Elina Labourdette), uma jovem de bordel, com a cumplicidade da mãe desta. É interessante observar a narrativa clássica que veste Hélène, a traída, de negro em contraposição com a música doce, as expressões ingênuas de Agnès. Maria Casares dá corpo a uma das melhores vilãs do cinema, graças à sua interpretação.






Assisti também a Os Visitantes da Noite (1942, França), dirigido por Marcel Carné, com roteiro de Jacques Prévert. O filme ficou muito aquém da minha expectativa quando li o enredo. Dois irmãos, Gilles e Dominique, filhos do diabo, têm a missão de desfazer o casamento da filha do rei, prestes a acontecer, num reinado do período medieval. Esse interessante enredo se transforma num filme repetitivo, enfadonho, sem acontecimento de forma nem de conteúdo. Tudo vira uma boba história de amor água com açúcar. Chato toda vida. Bem diferente do belo O Boulevard do Crime.

sexta-feira, abril 14, 2006

AS QUATRO AVENTURAS DE REINETTE E MIRABELLE, de Eric Rohmer


"A Hora Azul": um pneu de bicicleta furado numa estrada bucólica, no interior da França, desencadeia a relação entre Reinette e Mirabelle. A primeira é a que oferece ajuda à segunda para colar o pneu. E essa cena me catapulta à infância, quando eu e meu pai colávamos o pneu furado das minhas bicicletas, que iam mudando de tamanho conforme eu ia crescendo. Essa atividade, quase uma terapia, ficou no meu passado e parece estar num passado inocente em As quatro aventuras de Reinette e Mirabelle. Reinette, a que tem uma vida simples (entre cabras, vacas e galinhas), é uma jovem que preserva o convívio humano junto à natureza (este que vai desvanecendo conforme os centros urbanos crescem). Sua vida contrasta em muito com a de Mirabelle, habitante da moderna Paris. No entanto, o convite de Reinette para um lanche revela que a diferença produz os mais interessantes diálogos. Ao observar as pinturas de Reinette, Mirabelle diz que aquilo que ela pinta é surrealismo. Reinette, entretanto, nem sabe o que isso significa. Reinette convida Mirabelle para presenciar a Hora Azul, o minuto de silêncio antes do amanhecer, o momento em que a natureza pára de respirar e os animais não se manifestam, o instante em que o mundo poderia se acabar. Na expectativa da Hora Azul, um carro passa ao longe atrapalhando o momento mágico de Reinette e Mirabelle. Diante da fúria de Reinette, Mirabelle diz que compreende a Hora Azul, apesar de não tê-la presenciado por completo. Reinette rebate e diz que a Hora Azul não é para ser compreendida, não é razão, mas o sentimento. A volta aos primórdios, o sentir sem ter que explicar racionalmente, o reconhecimento de que o homem fracassou em tentar traduzir em palavras tudo o que sente.

"O garçom": Reinette agora está em Paris, dividindo apartamento com Mirabelle. Supostamente, cedeu à razão e faz aulas numa escola de belas artes. No café, Reinette tenta pagar os 4,30 francos pela bebida, mas não tem trocados, só uma nota de 200 francos. Diz que espera pela amiga e que ela poderá pagar o café com trocados. O garçom antipático retruca: "é sempre o velho golpe da amiga". Mirabelle chega, mas não tem os trocados para o café. As duas fogem. Reinette volta depois para pagar os 4,30 francos que deve. Um outro garçom se admira: voltou só para pagar 4,30 francos!

"O mendigo, a cleptómana e a maníaca": os conflitos entre Reinette e Mirabelle ficam mais expostos neste episódio da crônica de Rohmer. As discussões entre dar ou não esmolas ao mendigo, como faz Reinette, entre ajudar ou não a uma mulher que rouba um supermercado, como fez Mirabelle ou pegar de volta o dinheiro de uma pedinte, que tem sua farsa descoberta por Reinette, na estação de trem.

"A venda do quadro": Depois de ser advertida por Mirabelle sobre suas excessivas explicações a respeito de muitas coisas, sobretudo de suas pinturas, Reinette faz a aposta de ficar calada no dia seguinte, mas recebe um telefonema e precisa levar seu quadro para ser submetido à avaliação de um especialista. Ainda assim, Reinette mantém de pé a aposta e leva consigo Mirabelle. A pintora, se passando por muda, tem dificuldades para lidar com o caricato especialista que, depois de tantos questionamentos sobre a pintura (se é Magritte - Reinette nem sabe quem é esse, se é naif) para tentar desvalorizá-la, acaba por comprá-la. Aqui, Eric Rohmer finaliza o filme da forma mais sutil possível. Se pensávamos que o diretor faz a apologia ao campo, fomos enganados. Rohmer, acima de tudo, trata da sensibilidade e de como esta pode conectar pessoas de diferentes realidades. Pois a pintura de Reinette, supostamente campestre e ingênua, recém-vendida ao especialista, causa impacto em duas mulheres super-modernas que acabam de chegar à galeria.

Acho que o filme de Rohmer é simples e isso, um ensaio sobre a sensibilidade.


As quatro aventuras de Reinette e Mirabelle (4 aventures de Reinette et Mirabelle) França, 1987, 99min Direção: Eric Rohmer Roteiro: Joelle Miquel e Eric Rohmer Fotografia: Sophie Maintigneux Montagem: Maria Luisa García Elenco: Joelle Miquel, Jéssica Forde, François-Marie Banier, Philippe Laudembach, Gerard Courant, Jean-Claude Brisseau

quarta-feira, abril 05, 2006

É Tudo Verdade 2006


Abaixo, breves comentários sobre os pouquíssimos filmes que pude assistir no festival:

O Homem-Urso

Antes de falar propriamente de O Homem-Urso, uma curiosidade: fui assistir ao filme no Odeon e, minutos antes da projeção, a fita arrebentou. Amir Labaki, organizador do É Tudo Verdade, subiu ao palco para dizer que pela segunda vez a cópia arrebentava antes de uma projeção no Rio (a primeira foi no ano passado, no Festival do Rio). Começaram então a exibir o dvd, mas agora os problemas eram digitais. Paciência tem limite. Saí e fui assistir no Memorial Getúlio Vargas, no último dia do festival.

O filme de Werner Herzog é uma reunião de fitas gravadas por um ecologista que por 13 anos esteve na convivência de ursos castanhos. Em 2003, entretanto, quando Timothy Treadwell já julgava-se um urso em pele humana tamanha era a intimidade (por parte dele) com os bichos, ele foi devorado por um velho urso faminto. De quebra, a namorada foi junto. Desse episódio não há imagens já que o ataque surpresa não possibilitou a abertura da lente da câmera. O que há como registro é o áudio, mas Herzog optou por não reproduzir para o espectador a tragédia.

Aos poucos, o filme vai mostrando a mente confusa de Treadwell. Posicionado de frente para as câmeras que levava consigo nas incursões pelas florestas, o ecologista e cineasta amador explicita uma paranóia em relação ao resultado de sua imagem, o que vai além do olhar do ecologista. Treadwell, como sabemos ao longo do documentário, tem um histórico de envolvimento com drogas e parece apresentar um comportamento quase esquizofrênico na lida com ursos, raposas, com as instituições protetoras dos animais e os guardas dos parques. Apesar de tudo, Herzog mantém até o fim uma abordagem extremamente respeitosa em relação ao personagem. Aponta, no máximo, uma "tendência para o caos", ao parafrasear Hobbes.

O Homem-Urso (Grizzly Man), EUA, 2005, 103min Direção: Werner Herzog


Operação Lua

Stanley Kubrick, para conseguir o efeito de luz de velas no belo Barry Lyndon, precisou de uma lente especialíssima, desenvolvida pela NASA. O diretor só conseguiu a lente porque havia um conchavo entre ele e a agência espacial. É que no passado, mais especificamente em 1968, Kubrick, cedendo aos pedidos do governo americano (este, desejoso de se equiparar e ultrapassar os avanços tecnológicos da União Soviética), aceitou criar em estúdio a ida do Homem à Lua. Na época, o diretor filmava 2001, Uma Odisséia no Espaço e mostrou, portanto, habilidade técnica o suficiente para enganar um planeta inteiro (claro, há exceções: você com certeza conhece algum avô que não acredita nessa balela de um pequeno passo para o homem e um grande salto para a humanidade). Além de contra-argumentos da Física (gravidade etc etc etc) para desmascarar as imagens do homem na Lua, há, inclusive, o depoimento do todo-poderoso secretário de Defesa americano Donald Rumsfeld. Ai você pensa, se esse carinha, que como sabemos é um grande mentiroso, deu um depoimento para dizer que o homem não pisou no satélite natural da Terra, então só pode ser brincadeira. Mas aí o filme acaba e a gente se pergunta: será que pisou mesmo? É tudo mentira?

Operação Lua (Operátion Lune), França, 2002, 52min Direção: Willem Karel


Person

Com a presença da diretora do filme e VJ da MTV Marina Person, assisti, no Odeon, a um documentário de família, mas nem por isso menos belo e competente. Marina Person resgata as lembranças do pai, o cineasta Luis Sérgio Person, através dos depoimentos de sua irmã Domingas e da mãe, a também cineasta Regina Jehá. No lado afetivo-profissional, Marina conversa com personalidades das artes, que conviveram com Person, como, por exemplo, Carlos Reichenbach, Zé do Caixão, Antunes Filho, Ney Latorraca, Eva Wilma, Jean-Claude Bernadet e Jorge Ben Jor, cujas músicas trilham o documentário. Com bastante eficiência, a diretora faz de forma quase transparente a ponte entre os depoimentos sobre o Person cineasta e o Person pai, o que resulta num filme que flui sem fissura alguma na narrativa.

O tom assumidamente passional do filme revela ao espectador as intenções da diretora: fazer uma homenagem afetiva ao pai, mas também reaver o valor da filmografia de Person, que ambientou a maioria de seus filmes em São Paulo. Grande crítico e contemporâneo do Cinema Novo, Person teve uma carreira fora dos holofotes, apesar do sucesso de crítica de seus filmes. Em Person, a partir das imagens de São Paulo S/A, a personalidade existencialista do personagem, interpretado por Walmor Chagas, é entrelaçada e analisada como alter-ego do cineasta. Imagens de arquivo de uma entrevista que o cineasta concedeu à TV Cultura têm um poder tão forte no filme que parecem recuperar a alma de Person.

É entre as fotos de Luiz Sérgio Person, o rio e as árvores do sítio da família que Marina conduz a mãe e a irmã às reminiscências, incluindo aí a própria diretora cuja aparição constante na tela é antes de tudo um mergulho apaixonado e profundo em Person. Na cena final, Marina e Domingas caminham sobre os trilhos, atravessando um túnel e encontrando a luz e o verde da floresta no outro lado. Marina foi à floresta encontrar o pai.

Person, Brasil, 2006, 73min Direção: Marina Person


Leituras

Da produção de imagens: Consuelo Lins, professora universitária, cineasta e assistente de direção de Eduardo Coutinho, em viagens por trens e metrôs de Paris, filma com uma câmera de celular a introspecção de passageiros em suas leituras. Fragmentos de imagens das leituras, imagens obtidas por um simples telefone celular, pessoas em trânsito. Fugacidade.

Da possibilidade de leituras: os franceses lêem do "Código Da Vinci" ao mais erudito filósofo. Tudo isso cabe num metrô. Na França, a leitura é um hábito tão arraigado na população que chega a ser quase involuntário. A maioria dos franceses sabe limitar o tempo que passam de frente para a TV. No Brasil, a fraca disseminação do livro (seja pelo preço do livro ou pela falta de hábito do brasileiro em abrir um) não é somente ruim para editoras e livrarias, mas acarreta problemas na leitura do discurso por trás da imagem no cinema e na televisão. Ler livros é pré-condição para ler o mundo, no mais amplo sentido.

Leituras (Lectures), França, 2005, 6min Direção: Consuelo Lins


Notas: na vinheta que antecede os filmes do É Tudo Verdade 2006 a voz off diz que estamos diante de uma seleção dos melhores documentários do mundo. Quem viu I'm Charlie Chaplin (dir: Jay Rosenblatt, EUA, 2005, 8min) sabe que isso não é verdade. Um vídeo caseiro, mal produzido, de uma menininha que se veste de Charlie Chaplin e fica gritando "travessuras ou gostosuras" o tempo todo não pode ter passado por uma seleção tão criteriosa. Nessas horas eu penso na quantidade de bons filmes que ficaram de fora.