
No caso de Arca Russa, isso deve ser levado ao pé da letra já que são 96 minutos de plano-seqüência. A sensação de mergulho no tempo, proporcionada pelo plano-seqüência, é graças ao meio digital que, paradoxalmente, é anunciado como o responsável pelo fim do cinema. Um plano-seqüência real, sem corte algum, foi possível com a câmera digital de Sokurov. E este filme, definitivamente, não representa o fim do cinema.
E quando a câmera abre os olhos, quem vê parece ser esta mesma câmera, “Não repararam em mim”, diz. Começa a visita ao museu Hermitage e junto com ela, vamos revivendo as histórias por meio do retorno dos antepassados. A câmera se assume, então, como o narrador que vai abrir o baú da História. Sokurov faz, assim, a junção da diegese e da mímesis platônica. Vemos e ouvimos os diálogos dos personagens enquanto o narrador nos orienta pelas salas, diante das pinturas. “A Rússia é como um teatro”. A encenação fica clara, mas não me deixo levar pelas palavras e sim pelo encantamento das imagens. O narrador encontra um outro narrador que também nos guiará pelo espaço-tempo da História. Este segundo narrador, diferente do primeiro, é materializado num senhor que parece estar vestido de mestre de cerimônias e diz ter sido um diplomata no Congresso de Viena, em 1815. O primeiro narrador o chamará Europa. O primeiro narrador, cujo ponto de vista é sempre o da câmera, ao contrário, não lembra de onde veio e quando parou o seu tempo. Agora que acordou, julga estar no século XIX.
A História sedimentada a partir do acúmulo de repertórios do museu e do “pó das estradas” possibilitará o encontro do narrador com uma mulher cega cujo conhecimento do museu permite a ela apontar o lugar onde se encontra um Rubens ou um Van Dyck. O acúmulo da produção cultural não se resume somente ao de artistas russos, mas, principalmente, de europeus, no que o narrador indaga por que motivo os russos estão sempre a copiar, refletindo a partir de uma identidade russa que sempre esteve no conflito entre optar pela cultura e pelos modos europeus e ser nacionalista. No museu, estão também os mortos da guerra, os ecos dos caixões. Na frase do narrador, a intenção virtuosa de Sokurov, “Todos podem ver o futuro, mas ninguém se lembra do passado”. Contudo, mais do que uma viagem didática pelo tempo, a proposta é de uma viagem estética em que o passado é reencenado aos nossos olhos e as pinturas ganham movimento na diversidade de novas perspectivas.
Afinal, o fluxo temporal se revela de modo diferente para um e para outro. Enquanto o narrador-ponto-de-vista que nos guiou por todo o caminho manteve-se sempre na retaguarda, acentuando as profundidades de campo, o senhor mestre de cerimônias esteve a um passo de se envolver com os personagens na tecitura da História, quando não o fez. O que restou do velho homem, portanto, foi a nostalgia de um fim de baile e o pedido para que fosse abandonado pela câmera-narrador, ao passo que esta última, sempre no fluxo do plano-seqüência e mantendo a distância equivalente a de um freqüentador do Hermitage, pôde continuar no tempo. “Acabou”, “Adeus, Europa”. Afinal, os bailes, os galanteios, as questões políticas, a mesa farta e a nobreza em seu entorno eram histórias. Nosso olhar deixa para trás a encenação da aristocracia e o colorido de outros tempos. Se o cinza de agora traz uma idéia fixa da morte, por outro lado, “estamos condenados a navegar eternamente”, pois, como constatou o narrador, “o mar cerca tudo”.
Arca Russa (Russkiy Kovcheg), Rússia/Alemanha, 2002,
Direção: Aleksandr Sokurov
Roteiro: Boris Khaimsky, Anatoli Nikiforov e Aleksandr Sokurov
Direção de Arte: Natalya Kochergina e Yelena Zhoukova
Fotografia: Tilman Büttner
Figurino: Maria Grishanova, Lidiya Kryukova e Tamara Seferyan
Montagem: Stefan Ciupek, Sergei Ivanov e Betina Kuntzsch
Música: Sergei Yevtushenko
Elenco: Sergei Dontsov, Mariya Kuznetsova, Leonid Mozgovoy, David Giorgobiani, Aleksandr Chaban, Maksim Sergeyev, Anna Aleksakhina, Konstantin Anisimov, Aleksei Barabash, Vladimir Baranov, Valentin Bukin, Kirill Dateshidze, Yuli Zhurin, Natalya Nikulenko