quarta-feira, julho 25, 2007

ARCA RUSSA, de Aleksandr Sokurov

Enquanto fazia o trajeto que compreende a saída do cinema até a cadeira onde agora escrevo essa resenha, lembrei que tinha reproduzido algumas falas do filme no papel e pensei, “não consigo, porém, decodificar as imagens que vi”. E agora ficam resquícios dos resquícios das imagens que são “decodificadas” por mim e colocadas em outro código, o escrito. Daí que toda tradução e transcrição é traição e isso quase invalida o que está escrito. Escrevo agora somente porque, assim como o sonho, o filme é impalpável na sala escura e por isso quero eternizar o que sobra destes resquícios. Quero reler o que escrevi e ter uma lembrança do prazer que tive durante a projeção contínua.

No caso de Arca Russa, isso deve ser levado ao pé da letra já que são 96 minutos de plano-seqüência. A sensação de mergulho no tempo, proporcionada pelo plano-seqüência, é graças ao meio digital que, paradoxalmente, é anunciado como o responsável pelo fim do cinema. Um plano-seqüência real, sem corte algum, foi possível com a câmera digital de Sokurov. E este filme, definitivamente, não representa o fim do cinema.

E quando a câmera abre os olhos, quem vê parece ser esta mesma câmera, “Não repararam em mim”, diz. Começa a visita ao museu Hermitage e junto com ela, vamos revivendo as histórias por meio do retorno dos antepassados. A câmera se assume, então, como o narrador que vai abrir o baú da História. Sokurov faz, assim, a junção da diegese e da mímesis platônica. Vemos e ouvimos os diálogos dos personagens enquanto o narrador nos orienta pelas salas, diante das pinturas. “A Rússia é como um teatro”. A encenação fica clara, mas não me deixo levar pelas palavras e sim pelo encantamento das imagens. O narrador encontra um outro narrador que também nos guiará pelo espaço-tempo da História. Este segundo narrador, diferente do primeiro, é materializado num senhor que parece estar vestido de mestre de cerimônias e diz ter sido um diplomata no Congresso de Viena, em 1815. O primeiro narrador o chamará Europa. O primeiro narrador, cujo ponto de vista é sempre o da câmera, ao contrário, não lembra de onde veio e quando parou o seu tempo. Agora que acordou, julga estar no século XIX.

A História sedimentada a partir do acúmulo de repertórios do museu e do “pó das estradas” possibilitará o encontro do narrador com uma mulher cega cujo conhecimento do museu permite a ela apontar o lugar onde se encontra um Rubens ou um Van Dyck. O acúmulo da produção cultural não se resume somente ao de artistas russos, mas, principalmente, de europeus, no que o narrador indaga por que motivo os russos estão sempre a copiar, refletindo a partir de uma identidade russa que sempre esteve no conflito entre optar pela cultura e pelos modos europeus e ser nacionalista. No museu, estão também os mortos da guerra, os ecos dos caixões. Na frase do narrador, a intenção virtuosa de Sokurov, “Todos podem ver o futuro, mas ninguém se lembra do passado”. Contudo, mais do que uma viagem didática pelo tempo, a proposta é de uma viagem estética em que o passado é reencenado aos nossos olhos e as pinturas ganham movimento na diversidade de novas perspectivas.

Afinal, o fluxo temporal se revela de modo diferente para um e para outro. Enquanto o narrador-ponto-de-vista que nos guiou por todo o caminho manteve-se sempre na retaguarda, acentuando as profundidades de campo, o senhor mestre de cerimônias esteve a um passo de se envolver com os personagens na tecitura da História, quando não o fez. O que restou do velho homem, portanto, foi a nostalgia de um fim de baile e o pedido para que fosse abandonado pela câmera-narrador, ao passo que esta última, sempre no fluxo do plano-seqüência e mantendo a distância equivalente a de um freqüentador do Hermitage, pôde continuar no tempo. “Acabou”, “Adeus, Europa”. Afinal, os bailes, os galanteios, as questões políticas, a mesa farta e a nobreza em seu entorno eram histórias. Nosso olhar deixa para trás a encenação da aristocracia e o colorido de outros tempos. Se o cinza de agora traz uma idéia fixa da morte, por outro lado, “estamos condenados a navegar eternamente”, pois, como constatou o narrador, “o mar cerca tudo”.


Arca Russa (Russkiy Kovcheg), Rússia/Alemanha, 2002,
Direção: Aleksandr Sokurov
Roteiro: Boris Khaimsky, Anatoli Nikiforov e Aleksandr Sokurov
Direção de Arte: Natalya Kochergina e Yelena Zhoukova
Fotografia: Tilman Büttner
Figurino: Maria Grishanova, Lidiya Kryukova e Tamara Seferyan
Montagem: Stefan Ciupek, Sergei Ivanov e Betina Kuntzsch
Música: Sergei Yevtushenko
Elenco: Sergei Dontsov, Mariya Kuznetsova, Leonid Mozgovoy, David Giorgobiani, Aleksandr Chaban, Maksim Sergeyev, Anna Aleksakhina, Konstantin Anisimov, Aleksei Barabash, Vladimir Baranov, Valentin Bukin, Kirill Dateshidze, Yuli Zhurin, Natalya Nikulenko

segunda-feira, julho 23, 2007

LISTAS DOS FILMES VISTOS ENTRE ABRIL E JUNHO DE 2007

Scoop – o grande furo, Woody Allen (2006, EUA / Inglaterra) Match Point tornou a expectativa do próximo filme de Woody Allen ainda maior. Não sei se é pela proximidade temporal com o filme anterior, mas Scoop, ainda que bem engraçado, é um filme inferior do cineasta.
Ludwig, Luchino Visconti (1972, Itália/França/Alemanha) Ver texto sobre a trilogia alemã.
Obsessão, Luchino Visconti (1943, Itália) Um dado interessante é a inversão da concepção voyeuristica da mulher como objeto do olhar masculino, quando a câmera invasiva se aproxima e flagra Gino e não Giovanna. O que, de certo modo, condiz com os interesses de Visconti.
Corpos Ardentes, Lawrence Kasdan (1981, EUA) Noir revisitado.
O Destino Bate à Sua Porta, Tay Garnett (1946, EUA)
O Destino Bate à Sua Porta, Bob Rafelson (1981, EUA) Jack Nicholson e Jessica Lange explodindo em erotismo. Roteiro de David Mamet, adaptado do livro de James Cain, The Postman always rings twice.
Pacto de Sangue, Billy Wilder (1944, EUA) Roteiro de Billy Wilder e Raymond Chandler, também baseado em The postman always rings twice, de James Cain. Os créditos falam por si. Filmaço!
Sunshine – Alerta Solar, Danny Boyle (2007, Inglaterra) Sunshine expande o tempo e capta o instante em nome de uma experiência sensória diante do sol, permitindo ao espectador compartilhar da crise existencial do espaço. Danny Boyle, mais uma vez, colocando personagens em situações-limite. Imperdível!
Homem-Aranha 3, Sam Raimi (2007, EUA) Esta seqüência tem um roteiro interessante, mas é bem fraca em relação aos filmes anteriores.
Sin City, Robert Rodriguez e Frank Miller (2005, EUA)
A Nouvelle Vague por ela mesma, Robert Valey e André Labarthe (1995, França) Declarações e sentenças de quem fez a nouvelle vague (Godard, Rohmer, Truffaut, Chabrol). O que me marcou foi ver Jacques Rivette afirmando que a nouvelle vague foi, por definição, autodestrutiva.
Cartola, Lírio Ferreira e Hilton Lacerda (2006, Brasil) O mais interessante desta biografia é que ela nada contra a corrente do que se costuma esperar de um documentário biográfico. Um caleidoscópio de colagens de formas e conteúdos.
Proibido Proibir, Jorge Durán (2006, Brasil / Chile) Ver texto sobre o filme.
Baixio das Bestas, Cláudio Assis (2007, Brasil) Ver texto sobre o filme.
Profissão: Repórter, Michelangelo Antonioni (1975, França/Itália) The Passenger, no original. É por filmes como esse que Antonioni tem a garantia de eternidade de sua filmografia. Destaque para o plano-sequência extremamente bem feito e que por isso mesmo vive suscitando debates a respeito da forma como foi feito.
Lolita, Stanley Kubrick (1961, EUA)
No tempo das diligências, John Ford (1939, EUA)
A Hora e a Vez de Augusto Matraga, Roberto Santos (1965, Brasil)
Alpha Dog, Nick Casavettes (2007, EUA) Bem fotografado e com excelente roteiro do próprio Nick, Alpha Dog expõe a ferida, não faz concessões moralistas e por isso merece um lugar de destaque no cinema americano. Excelente atuação de Justin Timberlake.
A Leste de Bucareste, Corneliu Porumboiu (2006, Romênia) A trama demora a empolgar, mas quando pega no tranco, fica muito interessante, principalmente por discutir um fato político e histórico com tanto humor e distanciamento. Ponto alto para a metáfora do desfecho.
Zodíaco, David Fincher (2007, EUA) O grande achado de Zodíaco é ser um filme de detetive que sabota a própria idéia da clássica narrativa detetivesca, cuja base para solução está sempre na interpretação racional das pistas, e abre o sentido no desfecho. Além de tudo, o trabalho técnico do filme é excepcional.
Noite de Estréia, John Casavettes (1977, EUA) A sensação de constante improviso teatral, na trama, coincide com os improvisos do cinema de Casavettes. E isso é muito bom. Gena Rowlands brilha!
Uma Mulher Sob Influência, John Casavettes (1974, EUA) Este filme não seria este filme sem Gena Rowlands.
Irreversível, Gaspar Noé (2002, França)
Paris, Te Amo, Olivier Assayas, Frédéric Auburtin e Gérard Depardieu, Gurinder Chadha, Sylvain Chomet, Joel Coen e Ethan Coen, Isabel Coixet, Wes Craven, Alfonso Cuarón, Christopher Doyle, Richard LaGravenese, Vincenzo Natali, Alexander Payne, Bruno Podalydès, Walter Salles e Daniela Thomas, Olivier Schmitz, Nobuhiro Suwa, Tom Tykwer, Gus Van Sant e Emmanuel Benvihy (2006, França/Alemanha/Liechstenstein/Suíça)
Cão Sem Dono, Beto Brant e Renato Ciasca (2007, Brasil) Ver texto sobre o filme.

quarta-feira, julho 18, 2007

TRANSYLVANIA, de Tony Gatlif

Imagens da estrada vistas em travelling. No intervalo entre os travellings, no momento em que o olho consegue captar algo dos rápidos movimentos, vemos pessoas paradas num plano aberto para depois vê-las em close. Novamente o travelling e a alternância com as pessoas e close delas. Em Transylvania, já de início busca-se uma identidade, Zingarina busca algo que está além do pretexto em sair do sul da França para procurar o namorado que a deixou. Afinal, depois de sabermos que Milan, o namorado, abandonou Zingarina, e não foi deportado, como ela pensava ter acontecido, começa a parecer provável o auto-engano inconsciente empreendido pela personagem para que pudesse fugir ou buscar um encontro em outras terras. Milan fica, portanto, como uma peça sem importância na trama, uma fagulha para algo maior.

O algo maior é a música, a liberdade, o nomadismo e as incertezas, componentes que passarão a fazer parte da vida de Zingarina. As músicas, por exemplo, quase todas compostas por Tony Gatlif, diretor também de Exílios, quase se excedem em tentar transbordar a musicalidade do povo romeno, aproximando-se de uma visão quase caricata, ainda que Gatlif seja descendente de ciganos. É a mesma constante musical que incomoda Zingarina e a amiga Marie, no início da viagem. Mais tarde, Zingarine abandona Marie e assimila a musicalidade cigana na própria personalidade. Em todo o filme, a música cumpre a função de exorcizar tristezas ou celebrá-las para esquecê-las. Em contrapartida à esta música popular como expressão, a música sacra é usada para exorcizar o que há de “mau” em Zingarina quando esta visita um templo religioso. O que se tenta exorcizar ali é a vontade de liberdade e de vampirismo desterritorializado e destemporalizado na terra do conde Drácula.

No meio da viagem, Zingarina encontra Tchengalo, outro nômade que comercializa ouro e prata. Se por um lado, a identidade franco-italiana de Zingarina, se é que essa identidade chegou a se solidificar, é questionada por Tchengalo: “Quem é você? Não posso imaginar de onde você vem.”, Zingarina também, quando confunde um outro homem com Milan, ao dizer que todos são iguais, recebe a resposta de que “somos todos da mesma família, ciganos, romenos e húngaros”. De fato, quando já está prestes a parir o filho concebido na França com Milan, chama este de bastardo sem se dar conta de que, na verdade, o bastardo seria seu filho. Não fosse o sentimento de irmandade, já declarado pelos romenos, o filho que nasce não estaria sendo adotado por Tchengalo, outro nômade e agora pai por afeto.

A liberdade tem um preço. Ao final, quando Tchengalo chega para ver Zingarina e o filho recém-nascido e não os encontra, o temor é de que o nomadismo dela tenha ultrapassado a vontade de viver junto. Ele se vale das lembranças para trazer Zingarina de volta, como quando compra o urso de brinquedo num bar. Entretanto, Tchengalo volta novamente ao lugar onde Zingarina estava e a encontra, munida de um sorriso que o recompensa pelo retorno ao lar. Fica a vontade do espectador de que tudo não passasse de um sonho, que o sorriso fosse real e a leveza do ser fosse mesmo insustentável. Mas fica também a possibilidade de uma vida sem raízes, sem amarras, fugidia. Um elogio à liberdade.
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Destaque para a direção, para a fotografia e para as atuações de Asia Argento e Biron Ünel, além das músicas, que deixam os espectadores batendo os pés nos créditos finais.

Transylvania (Transylvania), França, 2006, 103min
Direção e roteiro: Tony Gatlif
Fotografia: Céline Bozon
Montagem: Monique Dartonne
Música: Tony Gatlif e Delphine Mantoulet
Elenco: Asia Argento, Biron Ünel, Amira Casar, Alexandra Beaujard, Marco Castoldi

domingo, julho 01, 2007

CÃO SEM DONO, de Beto Brant e Renato Ciasca

“Seja mágoa, seja felicidade, toma-me às vezes o desejo de me abismar. A manhã (no campo) está cinzenta e fresca. Sofro (de não sei que incidente). Uma idéia de suicídio se apresenta, pura de todo ressentimento (nenhuma chantagem contra ninguém); é uma idéia insípida; não rompe nada (não ‘quebra’ nada), combina com a cor (com o silêncio, com o abandono) desta manhã”. (Roland Barthes, em alusão à Werther, de Goethe, em fragmentos de um discurso amoroso)

Enquanto estava diante da projeção de Cão Sem Dono, já pensava no que fazer depois do filme. Achei que deveria sair sozinho e sentar numa mesa de bar para ficar pensando. Esse foi o efeito do filme do Beto Brant e do Renato Ciasca, baseado no livro do Daniel Galera. Toda a situação do Ciro, o personagem central da trama, criou uma forte empatia porque fala aos contemporâneos – pela dificuldade de entrar na fase adulta e se estabilizar financeiramente a fim de pagar as contas – , ao mesmo tempo em que trata de um tema universal – a melancolia e a constante falta de vontade de se levantar da cama. As reações de Ciro à vida lembram a indiferença do personagem de Camus, em O Estrangeiro. Ciro, no futuro, talvez não soubesse precisar o dia em que a mãe morreu. Ciro mora sozinho, mas é sustentado pelos pais enquanto tenta arrumar trabalho. Recém-formado em literatura, rejeita os trabalhos de tradução que recebe porque se sente pouco valorizado. Marcela, a linda namorada, recebe dele menos do que deveria. Ele até gostaria de ter o coração em descompasso, como escreve em papéis avulsos, numa tentativa de fazer um poema, mas seu ritmo é o da batida perfeita.

A luz natural em todo o filme – o que deixa o filme muito mais interessante – e a câmera tremida condizem com a falta de transcendência de Ciro. O realismo de Cão Sem Dono está também na encenação (ou, na falta de), nas falas quase improvisadas, meio à la Cassavettes, e na captação dos momentos íntimos de Ciro e Marcela, seja nos planos mais abertos ou nos closes.

Em Cão Sem Dono pouca coisa acontece. A falta de projeto de Ciro é sinal dos tempos. Para Ciro, entretanto, assim como os projetos futuros, o presente também é ausente. Não se vive nem o agora nem o depois. É o niilismo total. E a coincidência foi assistir no dia seguinte a Dias de Nietzsche em Turim, do Júlio Bressane. Foi deprimente ver imagens reais de Nietzsche em seu breve período de loucura, antes da morte.

Cão Sem Dono dá uma chance a Ciro, apesar de tudo.


Cão Sem Dono, Brasil, 2007, 82min
Direção: Beto Brant e Renato Ciasca
Roteiro: Marçal Aquino, Beto Brant e Renato Ciasca, baseado no livro “Até o dia em que o cão morreu”, de Daniel Galera
Fotografia: Toca Seabra
Montagem: Manga Campion
Elenco: Júlio Andrade, Tainá Muller, Luiz Carlos V. Coelho, Marcos Contreras, Roberto Oliveira, Sandra Possani