terça-feira, dezembro 27, 2005

O JARDINEIRO FIEL, de FERNANDO MEIRELLES




Naturalismo: O Cortiço, de Aluísio Azevedo, que foi publicado em 1890, retratando a profusão de gentes que viviam amontoadas nos cortiços da cidade foi, certamente, um dos argumentos que o prefeito Pereira Passos usaria no início do século XX para instaurar o famoso "bota abaixo", aquela reforma urbana que escorraçou todos os pobres para baixo do tapete e transformou o Rio na Paris dos trópicos. Em 2002, a tradição naturalista se mostrou ainda forte com o sucesso de bilheteria Cidade de Deus, de Fernando Meirelles. Naturalista porque quer se vender como verdade inquestionável, utilizando-se capciosamente de um depoimento do bandido Mané Galinha no Jornal Nacional, para legitimar a veracidade de toda a trama. Foi mais fácil tomar os moradores da favela como bandidos, se esquecendo dos grandes traficantes do asfalto. A mídia, com sua tendência ao reducionismo, adorou a idéia. Os moradores, não. Agora, em O jardineiro fiel, Fernando Meirelles se redime fazendo um filme que, naturalista ou não, joga a culpa nos grandes dominadores do mundo. O termo mais lugar-comum que os críticos utilizaram para falar do filme foi 'conspiração internacional'. E é isso mesmo. O filme, que começa com cenas românticas, logo se torna um thriller político ao narrar a história da mulher de um diplomata inglês, Tessa, que descobre laboratórios farmacêuticos testando na miserável população africana um tipo de medicamento contra a hepatite. Em contrapartida, prestam assistência enganosa ao povo que, abandonado, aceita ajuda do primeiro que lhe estende a mão. Com o desvendamento da rede que inclui não só empresas, mas também o acobertamento destas por setores do governo inglês, assim como a ameaça de tornar pública a denúncia, o assassinato da ex-futura heroína é inevitável. Só a partir daí, Justin, seu marido, vai sair da redoma que o protegia para correr o mundo atrás da resposta para a morte de Tessa e perceber que há muito mais corrupção do que ele imaginava. Apesar das mais de duas horas (129 minutos), a edição privilegia muito pouco a relação amorosa entre Tessa (Rachel Weisz) e Justin (Ralph Fiennes), fazendo parecer insólita a motivação do diplomata para levar a ativista à África junto com ele, já que ambos acabaram de se conhecer (só ao final a relação amorosa é retomada, com um desfecho bastante poético). Pouco explorada também é a atividade de jardineiro de Justin. Se se leva à risca o nome do filme, a trama corre o risco de ficar incompreensível já que o personagem aparece jardinando uma única vez. Por outro lado, a quantidade de acontecimentos mirabolantes que poderiam ficar soltos ganham um encadeamento admirável, deixando à mostra o excelente trabalho de direção de Fernando Meirelles. Há que se ressaltar a alternância de filtros de cores frias, quando a câmera mostra o mundinho criado por membros do governo e altos-executivos em suas festas e recepções em plena aridez africana, e os filtros de cores quentes aliados à câmera desorientada, ao mostrar a imensidão da miséria vivida pela maioria da população. A câmera na mão e os movimentos de travelling, como se estivéssemos fazendo uma viagem ao inferno, durante as tomadas de favelas e das sarjetas, nos jogam numa incompreensão da pobreza humana em contraste com o vampirismo de muitos que lá deveriam estar cumprindo um outro papel, que não o de tornar ainda mais pobre a castigada África. Acabei sendo apoderado pelo sentimento de revolta que o filme causa: no sinal de trânsito, tive uma atitude intolerante quando dois carros avançaram o sinal em faixas diferentes e quase atropelaram a mim e a meu amigo. No primeiro, soquei o vidro do carro e no segundo, chutei com força a lataria de um táxi, revoltado que estava com a falta de respeito da espécie. Depois, corremos porque o motorista parou e porque havia ali próximo um carro da polícia. Temi represália física pelas duas partes. Sim, é triste dizer, mas não confio mais na polícia carioca.

O Jardineiro fiel (The Constant gardener), 2005, Inglaterra / EUA, 129 minutos
Direção: Fernando Meirelles
Roteiro: Jeffrey Caine, baseado no romance homônimo de John Le Carré
Fotografia: César Charlone
Montagem: Claire Simpson
Elenco: Ralph Fiennes, Rachel Weisz, Danny Huston, Hubert Koundé

sexta-feira, dezembro 23, 2005

THE BROWN BUNNY, de VINCENT GALLO


Sim, há uma cena de sexo oral explícita em The Brown bunny. Chloé Sevigny, de fato, suga Vincent Gallo. Mas isso acontece quase no final do filme. E a carga dramática da cena, depois de tudo o que se passou, é tamanha que um possível olhar pornográfico do espectador se esvai. Pelo explícito e por outras coisas, o filme, dirigido, escrito, fotografado, montado, produzido e atuado (ufa!) por Vincent Gallo, foi eleito pelos críticos um dos piores na história do Festival de Cannes. Tudo bem, lá a cópia exibida tinha 30 minutos a mais, mas ainda assim considero o julgamento equivocado. Críticos erram, são humanos. Há muito o que se considerar em Brown Bunny. Chamar Vincent Gallo de narcisista, por exemplo, não procede. Se assim fosse, o que se diria, então, dos diretores que nem são donos do filme e nem por isso deixam de dar seus ataques de vaidade? Com a palavra Gallo: "Você acha que é divertido trabalhar sem assistente? Você acha que é interessante trabalhar sem suporte, um escritório de produção? Sentar numa merda de uma van com três caras dirigindo pelo deserto?". Esclarecido isso, vamos ao filme. Na trama, Bud Clay, um piloto de Fórmula II, depois de perder uma corrida em New Hampshire, segue para a Califórnia, onde será o seu próximo desafio. É nesse lugar algum, entre a saída e a chegada, que vamos acompanhando a solidão de Bud. Seqüências longas, como a da corrida, em que o som grave das motocicletas some, dando lugar às imagens silenciadas e sem foco de câmera, vão nos dirigindo a algum mal-estar que não é revelado. Estradas, estradas, estradas, dia, noite, madrugada, deserto, chuva, montanhas, carro sendo guiado na escuridão, com a ajuda apenas das faixas de sinalização na pista. Bud percorre sempre em silêncio. Pouco importa a beleza da paisagem, pouco importa o foco ou a imagem com luz estourada no deserto. Bud não está lá. A câmera dentro do carro é tão subjetiva quanto nossa atenção, que começa a divagar nos planos longos, cansada de procurar a causa da introspecção. Quando pára nas cidades, Bud tenta travar um relacionamento com as mulheres que encontra, a prostituta, a mulher desiludida, a vendedora da loja de conveniências, mas tudo é em vão. Todas elas não expressam coisa alguma. Com as poucas pessoas que conversa, os diálogos são banais e quase inaudíveis. Quando menos se espera, quando se pensa que o filme ali estagnou, ficamos sabendo que Bud procura Daisy, a mulher com quem morou e a razão de seu sofrimento. Agora, eles se encontram num hotel para conversar. E as causas: Daisy, que era a mulher de Bud, foi pega em flagrante, depois de ter se drogado bastante numa festa, transando ou sendo estuprada por três homens. Saiu da festa numa ambulância. Estava grávida, perdeu o filho. Bud nada fez, apenas sumiu. Agora ela tenta se explicar. Nesse meio tempo se passa a cena de sexo oral entre os dois. Em seguida, Daisy tenta se explicar, pede o perdão de Bud. Mas ela diz também que morreu naquele momento. Em flashback, um corpo está sendo levado pela ambulância. O sofrimento de Bud, portanto, tem uma causa ambígua: a morte de Daisy, no sentido literal, ou seja, tudo o que ocorreu no hotel não passou de um sonho ou a morte figurada. Neste caso, o sofrimento é a mágoa de ver ali na sua frente, ainda que viva, a mulher que foi maculada, violenta e voluntariamente, pelos outros, diante de seus olhos. No plano final, um close do perfil de Bud, na estrada. Quando saí do Odeon, compreendi porque Brown bunny, apesar da má fama, estava sendo exibido na sessão cineclube, dentro da programação dos melhores do ano.

The Brown bunny (The Brown bunny), 2003, EUA/ Japão /França, 93min
Direção, roteiro, fotografia e montagem: Vincent Gallo
Elenco: Vincent Gallo, Chloé Sevigny, Cheryl Tiegs

sexta-feira, dezembro 16, 2005

ELOGIO AO AMOR, de JEAN-LUC GODARD



Como narr-ar God-ard? Como falar de um filme de Godard se não há linearidade regular? Posso aqui desrespeitá-lo respeitando-o. Posso, então, fazer aqui um filme escrito. Mas o que é um filme se é escrito? Pois que o próprio, ele, não eu, popularizou junto aos cineastas da nova onda francesa, na década de 1950, que a câmera é sim uma caneta, uma 'caméra-stylo'. O diretor dirige, filma, como quem escreve uma história, um livro. Ele, Godard, já colocou em xeque a própria existência ao decretar a supremacia da palavra sobre a imagem. Contrariamente, Godard é puro sentido, explosão de cores, sons, imagens... Tudo desconectado!!! Em Elogio ao Amor, Godard fala das 'notas sobre o cinematógrafo', clássico de Robert Bresson (lançado este ano no Brasil). Diz ele, não exatamente nestas palavras, que 'o diretor dirige, antes de tudo, a si próprio'. Ora, o que faz Godard se não se dirige a si mesmo? ("Não consigo fazer o enorme trabalho de direção de atores que se pode encontrar em Bergman ou Renoir, quando podemos ver que eles amavam os atores como um pintor ama seus modelos.", diz Godard) Roncos. Orquestra externa na rotunda do CCBB vazando na sala de cinema. Bresson citado por Jean-Luc Godard novamente: 'não é o acontecimento que deve causar a emoção, mas o contrário'. Risos no escuro. A fileira de trás ri discretamente de mim e de minha amiga que, por nossa vez, rimos sem nos conter do velho que ronca e dá soluços atrás de nós. Até que ele diz: "que filme ruim!" e volta a dormir. Claro, está no seu direito. O que é o filme de Godard senão o caos? O que seria de Godard se cá fora, na platéia, não houvesse toda a sorte de situações estapafúrdias? Há que haver roncos e reclamações e risos e orquestra e barulho de saquinhos de biscoitos, amendoins, balinhas etc. Há que 'godardizar' a platéia e fazer ver que cinema não é recepção passiva. Pode sim, no cinema, haver xingamentos direcionados ao diretor, Sr. Jean-Luc, afinal, Godarte. A mostra onde o filme está inserido chama-se, inclusive, Cinema no cinema. Metalinguagem. Mostra-me os bastidores do set em que filmas e te direi quem és. Ou seja, se destina e é uma homenagem aos diretores que não pretenderam fazer de seus filmes uma cópia do real, a mímesis que Platão execrou, colocando assim o espectador ciente de que tudo se trata de cinema. Aliás, os franceses, gatos escaldados que são, costumam utilizar a palavrinha mágica quando querem dizer que alguém mente: 'fulano ta fazendo cinema'. Não precisamos, portanto, de uma montagem com narrativa tradicional nasci-cresci-morri à la David Coperfield. É claro que gostamos de catástrofes, grandes romances, enfim, do cinemão, mas reivindicamos, nós cinéfilos e espectadores, que se abra o jogo, queremos que os diretores, produtores e atores saibam que não caímos nessa lorota. Tudo bem, eu confesso que choro no escurinho do cinema. Ronco, bandinha lá fora, quebra da linearidade cá e acolá, o roncador se levanta faltando quinze minutos para cair o pano. E o filme? Ah, sim. Atores que ensaiam para montar um filme sobre as fases de um relacionamento amoroso. Na tela, o passado é em cores. O presente, em P&B. Vai saber! Dá tempo de fazer piada com os americanos. Diz a personagem francesa ao produtor de cinema americano: - Mas Estados Unidos de onde? - Estados Unidos da América. - Da América? Mas o país não é toda a América. Veja o Brasil: Estados Unidos do Brasil. É por isso que vivem se apropriando da história dos outros países. Enfim, esquecem da fronteira, acham que o domínio é global e fazem de Hollywood um simulacro do mundo, comportando em seus estúdios a Itália, o Marrocos e quem mais desejarem. E aí eu tenho que parar de escrever. E aí eu não falei nem de metade do filme. E aí que Godard é assim, efusivo, multicolor, multisonoro, multivisual, multicolagem-multidescolagem. E eu procurei ser tão disperso quanto. E aí que...

Elogio ao amor (Éloge de l'amour) 2001, França/Suíça, 97min
Direção e roteiro: Jean-Luc Godard
Elenco: Bruno Putzulu, Cecile Camp, Jean Davy, Françoise Verny, Audrey Klebaner, Philippe Lyrette

segunda-feira, dezembro 05, 2005

MARCAS DA VIOLÊNCIA, de DAVID CRONENBERG



Eu andava pela Cinelândia, caminhando em direção ao Theatro Municipal, depois de sair do Cine Palácio. Entre o burburinho de pessoas que bebiam e conversavam no Amarelinho, meninos que cheiravam cola na calçada em frente e taxistas que se reuniam próximos à estação do metrô para admirar com olhares esticados as mulheres que passavam, eu fazia filosofia barata com meus botões. Comecei a imaginar a imensidão de segredos de cada um daqueles rostos anônimos que passavam por mim respirando o ar da segunda-feira, início de noite, saída do trabalho. Pensava a partir do filme de David Cronenberg, que eu acabara de assistir, na tese de que a violência é inerente ao ser humano e, por isso, somos coniventes com os atos repreensíveis de quem amamos. E, inclusive, somos capazes de ser cúmplices. Em Marcas da violência, Tom Stall (Viggo Mortensen) é um sujeito pacato numa cidade igualmente pacata, dono de um pequeno restaurante e com uma família aparentemente normal. Até o dia em que dois bandidos entram no restaurante e Tom os mata em legítima defesa. Daí, a mídia local transforma Tom num herói e o restaurante vira quase ponto turístico dos próprios habitantes. A aparição de Tom nos jornais dá pistas para uns sujeitos estranhos encontrarem quem procuravam. Estes colocam em xeque a identidade 'Tom Stall' afirmando que Tom nada mais é que Joey, um sujeito violento que tentou apagar um passado de delinqüências. Já se tornou clichê a idéia da dupla identidade, mas com Cronenberg a história ganha um clima diferente: trilha sonora à la trash movie-80's, violência e vísceras explícitas, ainda que em seqüências rápidas e não estilizadas e um clima de David Lynch, com personagens esquisitos, como o irmão de Tom, interpretado por William Hurt. O apagamento dos rastros da história (o título original é "A history of violence") é a tentativa frustrada de não querer mostrar à sociedade tudo o que, de fato, existe. Como apagar é quase sempre impossível, sobrepõem-se novas camadas. Entretanto, se o que é forte estiver por baixo, um dia há de vir à tona, fazendo brotar toda a sujeira humana, tudo o que incomoda, como na cena em que uma mosca tenta sair do quarto através da janela enquanto lá fora o sangue corre solto. A mosca é uma alusão ao podre que ela representa e ao asco que temos dela, assim como é referência ao clássico A mosca (1986), do mesmo diretor, em momento doppelgänger (dupla personalidade) levado ao extremo. Em Marcas da violência, a delimitação entre Tom e Joey é mais ambígua e sutil, até porque ambos são exatamente a mesma pessoa física, e não um homem que se transforma num homem-mosca. E quem assistiu ao filme e embarcou na tese de Cronenberg, entende e contextualiza palavras como cumplicidade e conivência. Como explicar o sofrimento e o ódio da mulher e do filho de Tom evoluindo para a aceitação do chefe da casa, à cabeceira da mesa de jantar, depois deste acertar as contas com o passado? Em 'acertar contas com o passado' leia-se exterminar pessoalmente todos os que estão ligados à sua parte Joey. Isso só comprova que, vinte anos passados, Tom não mudou. Ainda é e continuará sendo lobo em pele de cordeiro. É Tom, mas é também Joey. Tenta destruir os rastros de Joey, mas se utiliza da própria violência característica dele. Não pode, portanto, se apagar. É a velha frase 'o passado me condena'. Agora, saindo da Avenida Almirante Barroso, um vento quente sobe de uma das galerias subterrâneas. Algo respira por baixo de tudo o que está visível nessa cidade. Para cada Tom, é provável que haja um Joey.

Marcas da violência (A history of violence) 2005, EUA, 96min
Direção: David Cronenberg
Roteiro de Josh Olson, baseado no enredo da HQ de John Wagner e Vince Locke Elenco: Viggo Mortensen, Maria Bello, Ed Harris, Willliam Hurt

OS AMANTES, de LOUIS MALLE


No dia de encerramento da mostra Eros, na cinemateca do MAM, o filme escolhido tem o mérito de ser um trabalho de grande qualidade, além de historicamente polêmico à época de seu lançamento, em 1958. Foi censurado em alguns países, incluindo França e Brasil. Eu ainda não estava no planeta neste ano, mas em tempos recentes lembro-me de ter assistido ao seriado "Engraçadinha, seus amores e seus pecados", na TV Globo. E mais especificamente, me recordo do personagem do ator Paulo Betti, um homem casado que investia feito um lobo mau na ninfeta Engraçadinha. Entre outras safadezas, o personagem falava aos sussurros de um filme em cartaz que estava causando frisson na juventude e que as donas de casa, em nome da moral e dos bons costumes, estavam execrando: um tal de Os Amantes. Bastou isso para eu ser tomado por uma onda contagiosa de pessoas que mitificavam o filme, assim como parece ter ocorrido naquela época. Os Amantes, do francês Louis Malle, apresenta a história de Jeanne Tournier, mulher de Henry, o dono de um jornal em Dijon, no interior da França. Como bem sabemos, ser mulher ou marido de jornalista não é tarefa fácil. Naquela época já não era. Jeanne prefere, portanto, os agitos, as modas e os amigos de Paris à vida entediante com um marido que não lhe dá a mínima. Na capital, ela mantém um relacionamento amoroso com o jogador de pólo Raoul. Jeanne conta com a cumplicidade da amiga Maggy, um álibi para suas constantes idas à Paris. No entanto, o marido, desconfiado, propõe à mulher um jantar com a presença de Maggy e Raoul, que aceitam o convite e seguem para Dijon. Jeanne dirige sozinha seu carro também para Dijon, mas pára na estrada por problemas mecânicos. Enquanto os convidados aguardam a chegada da anfitriã, esta, ainda na estrada, consegue uma carona com o arqueólogo Bernard. Lá, Henry oferece uma noite de hospedagem a Bernard em retribuição à gentileza prestada. Acontece que, à mesa de jantar, a despeito da momentânea falta de luz que deixa os convidados na escuridão, Jeanne começa a perceber o esquema ridículo a que está submetida e pensa consigo, acompanhando, agora em igualdade, o narrador onisciente que já existia desde o início do filme: "um amante ridículo", "pensava estar num drama, mas estava comédia". Isso mesmo, um amante frouxo que poderia ser interessante em Paris, mas que ali é domesticado pelo arquiinimigo Henry. Durante a madrugada, vai ao jardim para refrescar a cabeça e encontra Bernard. Ele investe sobre ela, que resiste por pouco tempo. Horas depois, estarão vivendo uma história de amor. Crítica aos valores burgueses como o status profissional e social (Bernard detesta toda a futilidade dos presentes, assim como é menosprezado por essa gente) , ao casamento e ao próprio ato de esvaziar o caráter transgressor de uma relação entre amantes, institucionalizando-a, levando o amante à própria casa e tornando-o peça orgânica daquele esquema hipócrita. Jeanne e Bernard seguem, literalmente, num barco sem rumo, num leito de amor itinerante, sem destino e sem preocupação com o prazo de validade. É verdade então que o amor chega de assalto, como um forasteiro. Os Amantes é, pois, a subversão da subversão. O amante do amante do amante. A terceira margem do rio. Isso ficou mais latente para mim do que a aparição de parte do seio de Jeanne Moreau. A atriz está um esplendor. Tão boa quanto em Mata Hari e muito melhor que em Ascensor para o cadafalso e A Noite. A fotografia é de Henri Decae, que fez também Ascensor..., do Louis Malle, e o excepcional Os incompreendidos, do meu cineasta-poeta preferido François Truffaut. Ao fim, o casal segue num carro, sem destino, já que o próprio narrador, em off, diz não saber onde a história vai dar. Mas o que importa é que ela foi muito bem contada.

Os Amantes (Les Amants) 1958, França, 88min, P&B
Direção: Louis Malle Roteiro: Louis Malle, Louise de Vilmorin
Elenco: Jeanne Moreau, Alain Cuny, Jean-Marc Bory, Judith Magre, Jose-Luis Villalonga

A NOIVA-CADÁVER, de TIM BURTON e MIKE JOHNSON



O que se diz por aí é que Tim Burton persistiu tanto em seus filmes que acabou por criar estilo inconfundível. É verdade. Nada tenho a acrescentar a esse dado. Entretanto, por mais que haja coerência ou mais do mesmo, como querem os que não gostam do diretor, devo confessar que continuo sendo surpreendido a cada filme. Em A Noiva Cadáver há uma série de elementos burtonianos (não sei se este termo existe) como o gótico, o fantástico e a presença de Johnny Depp, que estão também em filmes como Edward, mãos de tesoura, A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça e, mais recentemente, a releitura de A Fantástica Fábrica de Chocolate. A despeito de todas as ferramentas que se repetem em cada filme, Tim Burton, em co-direção com Mike Johnson, consegue inovar e prender o público que vai assistir aos 80 minutos da fantástica história, baseada no folclore russo, de Victor Van Dorf, um filho de novos-ricos que está prometido a Victoria, filha de aristocratas em decadência. No ensaio para o casamento, sob a autoridade de um severo pastor anglicano, Victor não consegue repetir a declaração que terá de fazer à noiva no grande dia. Depois de fugir da igreja durante o teste, caminhando por uma floresta tenebrosa, Van Dorf repete todo o discurso e acaba por acordar do túmulo Emily, a noiva que fora assassinada pelo ex-futuro marido antes do enlace. Desperta, ela crê que Victor é o noivo que veio libertá-la e o leva para o mundo dos mortos a fim de promover o casório da dupla vivo-morta. Curiosamente, a oposição entre mortos e vivos é invertida e destoa da corriqueira idéia de que o além é sempre assustador. Aqui, no nosso mundo, impera um tom solene acompanhado de um constante cinza de cenários, personagens e humores, como de fato é, e lá, uma festa de cores e irreverência. Outra opção interessante é a de desviar, mais para o fim, o foco de atenção de Victor para Emily (por mais que o filme leve o título noiva-cadáver, a tendência poderia ser a de privilegiar e centrar a narrativa em Victor. Por ser personagem masculino, por ter a voz de Johnny Depp e, por que não, por ser de nosso mundo e, logo, se aproximar mais de nossa compreensão), mostrando as reações, a vingança e o destino da noiva-cadáver. Neste filme, Tim Burton volta às origens da carreira de animador, que começou nos estúdios da Disney, em 1982. Utiliza a técnica de stop-motion - a filmagem quadro a quadro de cada cena dos bonecos feitos de aço inoxidável e recobertos de silicone - já adotada em O Estranho Mundo de Jack, em 1993, na contra-maré de desenhos feitos inteiramente por computação gráfica. Talvez o comentário soe engraçado para um desenho de animação, mas até o trabalho de fotografia se faz notável e merece destaque. Como não podia deixar de ser, a voz de Victor é dublada por Johnny Depp, sem falar na semelhança de traços entre o personagem e o ator. Extra filme o que fica? A certeza de que Tim Burton consegue sucesso entre pipocas e cults. Tese radicalmente comprovada pela pesquisa de campo do antropólogo informal aqui (rsrsrs), na fila do Odeon, onde vejo adolescentes (de roupas, botas e tênis pretos, acessórios de metal, olhos pintados à la Edward mãos-de-tesoura) que mais parecem estar num show da Pitty e adultos e pseudo-adultos com olhar blasé (alguns com óculos retangular de armação preta, camisa quadriculada, tênis all star) como que entrando num Paissandu ou Estação Botafogo da vida. Em comum, a espera ansiosa para assistirem ao mesmo filme e a satisfação com o resultado, na saída.

A Noiva-cadáver (Corpse bride), 2005, Reino Unido, 80 min
Direção: Tim Burton e Mike Johnson
Animação com as vozes de Johnny Depp, Helena Bonham Carter, Emily Watson, Albert Finney, Chistopher Lee, Joanna Lumley

PLANO DE VÔO, de ROBERT SCHWENTKE



Um convite para assistir a um filme-pipoca em pleno dois de dezembro, feriado dos mortos, num tempo enlouquecido feito esse que cariocas já estamos nos acostumando soa para mim como programa de índio, intriga internacional ou, em alguns casos, como ofensa pessoal, mas não é este o caso. Não sei se por preconceito ou por ter sido apresentado ao mundo inteligente fora de Hollywood (venhamos e convenhamos que até mesmo os fãs da indústria cinematográfica americana sempre sabem o final do filme assim que vêem o cartaz na porta do cinema). Mas meus amigos não conspiravam contra mim. Conspiração mesmo foi a vivida por Jodie Foster. Com vocês, no telão: Plano de vôo. Ah, mas antes disso, é claro, tenho que falar do que vem antes, obviamente. E o que vem antes num cinema pipoca??? Ganha uma pipoca quem adivinhar... Uma enxurrada de traillers, é claro. Uns cinco costuma ser a média. Precisam ser impactantes pra fazer com que as pessoas esqueçam da comida e do refrigerante. E precisa ter corte ágil, som alto, frases de efeito entre as cenas e muita adrenalina, mas muita mesmo, a ponto de eu achar que posso ter um ataque cardíaco a qualquer momento tamanho é o exagero. Depois disso, ninguém dorme. Pelo contrário, quando vem o silêncio, a trilha sonora, digamos... hmm... diegética, aquela que não é do filme, mas das poltronas, se manifesta com maior intensidade: mãos nervosas não se intimidam no embate com os sacos de pipoca. Agora sim, o filme. É como eu disse, todo mundo sabe o final. O que interessa é saber como Jodie Foster se sai em uma hora e cinqüenta minutos. E se sai bem. É legal ver que a atriz envelheceu. E convence como a mãe que tem a filha seqüestrada num avião com 400 passageiros que segue de Berlim para Nova York e leva, entre outras coisas, o corpo do marido, que caiu do telhado num acidente. É claro que no primeiro susto, quando a menina some antes do embarque, no saguão do aeroporto, sabemos que não é daquela vez, que a intenção é colocar os espectadores em alerta, tanto é que a música cresce em dramaticidade. Esse é mais um chavão do cinema comercial americano. Mas o roteiro desenvolve bem a trama: no jogo de empurra para definir quem é o seqüestrador, a paranóia americana pós-11 de setembro mira o alvo no primeiro árabe que encontra no avião. Felizmente, para se livrar do tom preconceituoso e da obviedade, a resposta não é essa. Depois tem se a sensação de que há um plano que envolve mais pessoas. Cresce também a possibilidade de que Kyle (Jodie Foster) esteja sofrendo alucinações. O avião, que já era um tanto claustrofóbico, vira um pandemônio quando Kyle decide revirar tudo e todos para encontrar a filha. A despeito da trama interessante, o final é previsível. Mesmo assim, saio pensando que não é tão fácil resistir a um filme do esquemão. Viva o filme pipoca, viva o filme cult, viva a diversidade! O que não dá é sair do cinema e encontrar a mesma chuva de quando entrei. O centro consegue ficar ainda mais vazio do que já é em feriados e domingos e eu tenho que me arriscar na arte de andar pelas ruas do Rio de Janeiro pulando poças, fugindo de goteiras e cuidando para não dar de frente com suspeitos. Tudo pelo cinema, seja ele qual for.

Plano de vôo (Flightplan), 2005, EUA, 110 min
Direção: Robert Schwentke
Elenco: Jodie Foster, Peter Sarsgaard, Sean Bean, Marlene Lawston, Erika Christensen, Kate Beahan