Eu andava pela Cinelândia, caminhando em direção ao Theatro Municipal, depois de sair do Cine Palácio. Entre o burburinho de pessoas que bebiam e conversavam no Amarelinho, meninos que cheiravam cola na calçada em frente e taxistas que se reuniam próximos à estação do metrô para admirar com olhares esticados as mulheres que passavam, eu fazia filosofia barata com meus botões. Comecei a imaginar a imensidão de segredos de cada um daqueles rostos anônimos que passavam por mim respirando o ar da segunda-feira, início de noite, saída do trabalho. Pensava a partir do filme de David Cronenberg, que eu acabara de assistir, na tese de que a violência é inerente ao ser humano e, por isso, somos coniventes com os atos repreensíveis de quem amamos. E, inclusive, somos capazes de ser cúmplices. Em Marcas da violência, Tom Stall (Viggo Mortensen) é um sujeito pacato numa cidade igualmente pacata, dono de um pequeno restaurante e com uma família aparentemente normal. Até o dia em que dois bandidos entram no restaurante e Tom os mata em legítima defesa. Daí, a mídia local transforma Tom num herói e o restaurante vira quase ponto turístico dos próprios habitantes. A aparição de Tom nos jornais dá pistas para uns sujeitos estranhos encontrarem quem procuravam. Estes colocam em xeque a identidade 'Tom Stall' afirmando que Tom nada mais é que Joey, um sujeito violento que tentou apagar um passado de delinqüências. Já se tornou clichê a idéia da dupla identidade, mas com Cronenberg a história ganha um clima diferente: trilha sonora à la trash movie-80's, violência e vísceras explícitas, ainda que em seqüências rápidas e não estilizadas e um clima de David Lynch, com personagens esquisitos, como o irmão de Tom, interpretado por William Hurt. O apagamento dos rastros da história (o título original é "A history of violence") é a tentativa frustrada de não querer mostrar à sociedade tudo o que, de fato, existe. Como apagar é quase sempre impossível, sobrepõem-se novas camadas. Entretanto, se o que é forte estiver por baixo, um dia há de vir à tona, fazendo brotar toda a sujeira humana, tudo o que incomoda, como na cena em que uma mosca tenta sair do quarto através da janela enquanto lá fora o sangue corre solto. A mosca é uma alusão ao podre que ela representa e ao asco que temos dela, assim como é referência ao clássico A mosca (1986), do mesmo diretor, em momento doppelgänger (dupla personalidade) levado ao extremo. Em Marcas da violência, a delimitação entre Tom e Joey é mais ambígua e sutil, até porque ambos são exatamente a mesma pessoa física, e não um homem que se transforma num homem-mosca. E quem assistiu ao filme e embarcou na tese de Cronenberg, entende e contextualiza palavras como cumplicidade e conivência. Como explicar o sofrimento e o ódio da mulher e do filho de Tom evoluindo para a aceitação do chefe da casa, à cabeceira da mesa de jantar, depois deste acertar as contas com o passado? Em 'acertar contas com o passado' leia-se exterminar pessoalmente todos os que estão ligados à sua parte Joey. Isso só comprova que, vinte anos passados, Tom não mudou. Ainda é e continuará sendo lobo em pele de cordeiro. É Tom, mas é também Joey. Tenta destruir os rastros de Joey, mas se utiliza da própria violência característica dele. Não pode, portanto, se apagar. É a velha frase 'o passado me condena'. Agora, saindo da Avenida Almirante Barroso, um vento quente sobe de uma das galerias subterrâneas. Algo respira por baixo de tudo o que está visível nessa cidade. Para cada Tom, é provável que haja um Joey.
Marcas da violência (A history of violence) 2005, EUA, 96min
Direção: David Cronenberg
Roteiro de Josh Olson, baseado no enredo da HQ de John Wagner e Vince Locke Elenco: Viggo Mortensen, Maria Bello, Ed Harris, Willliam Hurt
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