terça-feira, outubro 25, 2005

GAROTOS DE PROGRAMA, de GUS VAN SANT



Nuvens passam. E passam. E novamente. Em momentos diferentes. Gus Van Sant gosta de filmar o céu com a passagem das nuvens. Fez isso também em Elefante. Será isso algo reflexivo? Ou somente uma elipse, um pulo temporal? Que seja, mas o assunto 'tempo' é também um gancho para falar da minha relação com o filme de Van Sant. É que quando cheguei ao MAM, li no cartaz que o filme programado, por problemas técnicos, fora cancelado. Em seu lugar seria exibido Garotos de Programa. Volto então ao passado e lembro que assisti ao filme, pela primeira vez, em 1997. Naquele ano, meu pai assinara a TV à cabo. Me vi feliz, mas perdido naquela profusão de filmes. Na ânsia de querer conhecer a filmografia mundial, virava noites assistindo dos clássicos aos modernos. As horas de sono que se estendiam até às 11h - horário de acordar para ir à escola - eram reflexo da ressaca, da vida vampiresca de ir dormir às cinco, seis horas da manhã. Eu não me queixava. Sabia que filmes com títulos pouco ortodoxos só seriam mesmo exibidos no horário em que as crianças já estivessem dormindo. Sem falar nos 'midnight movies' de nomes tão insuspeitos que nada tinham de submundo até que começassem a ser exibidos. Quando assisti à Garotos de Programa, ainda entrando na adolescência, pouco entendi e pouco lembro do que ficou. De mim e do filme. Creio que seja mais ou menos assim nossa relação com a arte, ela permanece ao passo que, com o acúmulo de experiências na vida, nossas releituras se modificam (acabei de ter um baque com a recente releitura de O Estrangeiro, do Camus, feita, pela primeira vez, há uns seis anos). Dessa vez, sentado numa poltrona de uma cinemateca, irremediavelmente acometido pela doença da cinefilia que começava a nascer naquela época, as impressões são a de uma história de uma figura melancólica, tanto na ficção quanto na vida real. No plano da realidade, a morte causada por overdose do ator River Phoenix, o menino loirinho do belo Conta comigo (Stand by me, 1986, de Rob Reiner), em 1993, dois anos após o lançamento de Garotos de Programa. Na ficção, Mike, o deprimido personagem de Phoenix, cuja vida marginalizada e com um futuro inevitavelmente previsível só me desperta uma estranha indiferença e um sentimento de piedade pelos mais fracos. Talvez seja ele alguém que não devesse ter nascido. De certa forma, o meu olhar sobre o personagem é alterado pelo suicídio na vida real, torna-se difícil dissociar arte e vida de River Phoenix ao pensar no quanto o personagem o influenciou e no quanto de verdade havia de River Phoenix naquele personagem. Há uma impossibilidade anunciada por Scott (Keanu Reeves) quando diz que Mike não pode ser garoto de programa se tem narcolepsia e desmaia todas as vezes em que está de frente para um cliente prestes a mergulhar com devassidão no jovem corpo. Há uma impossibilidade de construir sua trajetória de vida se não conhece o pai e não consegue descobrir onde se encontra a mãe, ainda que se desloque ou seja levado em estado de letargia para vários lugares, à sua procura. Há impossibilidade de viver depois de declarar seu amor por Scott - o amigo playboy e rebelde sem causa que faz programas para passar o tempo - e ser descartado. Falta a ele, pois, o passado e o futuro. E é melhor que viva num presente deplorável, mas eterno, de modo que viva um dia após e pior que o outro, esquecendo o dia anterior e deixando de pensar no dia seguinte. O clima datado 'fim dos anos 80', com direito à música de Madonna, num bar, me joga, por instantes, em tempo e lugar que não vivi, mas que sei: não voltarão. Percebo que me falta falar muito mais do filme, como, por exemplo, a participação de Shakespeare no roteiro, 'in memoriam', é claro. E, no final das contas, quase tudo na vida fica 'in memoriam'.

Garotos de Programa (My Own Private Idaho), 1991, EUA, 114min
Direção: Gus Van Sant
Roteiro: Gus Van Sant / trechos de Henrique IV, de William Shakespeare
Elenco: River Phoenix, Keanu Reeves, James Russo, William Richert, Udo Kier

quinta-feira, outubro 20, 2005

A PROFESSORA DE PIANO, de MICHAEL HANEKE



Pela primeira vez visitei a Cinemateca do MAM. Eu corria para chegar às 16h, horário da sessão de Filme de Amor, do Júlio Bressane. Não consegui chegar a tempo do filme. Mais uma tarde ensolarada de domingo eu saíra para ver um filme e me atrasava. Chegando por volta das 16h30, fui procurar a cinemateca. Seguindo as placas informativas, me encontrava agora num corredor escuro, ouvindo sons que, com certeza, vinham de uma sala de projeção. Lá, vi pessoas sentadas, iluminadas pela luz da tela. Olhei para o foco de atenção destas pessoas. Via, em preto e branco, uma mulher, vestindo somente uma calcinha, que se abaixava mostrando a... o... digamos, derrière ao personagem da cena, que estava em contra-plano, e ao público. E a mim, por que não? Justamente no momento em que olhei para a tela! Saí, em seguida, com a sensação da cinefilia. Senti-me duas vezes voyeur por admirar aquela linda cena e por espiar espectadores que espiavam. A propósito, algumas teorias do cinema nos colocam, espectadores, como o sujeito que espia a tela. Por isso, o escurinho do cinema para que os atores não nos vejam (herança de algumas teorias teatrais). Apesar de não ter assistido este Filme de Amor, lá permaneci a fim de entrar na sessão das 18h. Eu não sabia que, ao entrar na sessão de A Professora de Piano, me depararia com uma personagem também voyeur. Erika, a professora de piano do título, refugia-se em cabines de filme pornô para revirar a cesta de lixo à procura do líquido expelido do prazer masturbatório dos homens que por ali passam. Também ela duplamente voyeur por catar papéis sujos de esperma e imaginar naquela cabine os homens assistindo à mesma cena que agora ela assiste. A Professora de Piano é erótico (incluído na mostra Eros, da cinemateca) e, portanto, bem mais complexo do que os filmes de sexo puramente carnal. Erika, uma mulher que talvez caminhe para os quarenta anos de vida, ainda mora com a mãe. Uma mãe muito rigorosa com os horários da filha. E uma filha que exerce uma profissão igualmente rigorosa e que exige dos alunos a precisão racionalista que envolve o executor de um Schubert, para ficar no músico-virtuose preferido da professora. A distante relação aluno-professora, no entanto, tenta ser rompida por um estudante mais ousado. Erika, que se mostrava ainda mais resistente com as investidas, acaba por ceder. Daí, o filme se desvela: toda uma imagem de contenção vai por água abaixo quando a mulher se revela sedenta pela transgressão sexual, assustando o aluno que tentava quebrar a casca de noz. O grande achado do filme é contrapor um jovem bonito, mas inexperiente talvez, na arte do amor por desejar uma relação simplificada papai-mamãe e uma mulher que teoriza suas vontades de transgressão moral e sexual a dois através de uma carta dada ao rapaz. O que parece evidente é a longa espera de Erika por alguém que atropelasse todos os bons modos que ela mostra aos outros. O que me surpreendeu é a frieza com que o diretor encaminha a história, a fotografia correta e criativa, a atuação de Isabelle Huppert, que parece estar sempre procurando algo além da tela e, portanto, do nosso campo de visão e a sobriedade musical. No final, não sabemos se Erika consegue dar cabo da própria vida porque ela escapa, ferida, do quadro planejado pelo diretor. Este, fugindo do modelo cinema-convencional, deixa a personagem seguir e fixa a câmera na fachada da escola de música. Decisão bem tomada. Pelo sim, pelo não, os créditos finais de um filme percorrido por Beethovens, Schuberts e Schumanns são silenciosos.

A Professora de Piano (Le Pianiste) , França / Áustria, 2001, 135 min
Direção: Michael Haneke
Roteiro baseado na novela de Elfriede Jelinek
Elenco: Isabelle Huppert, Benoit Magimel, Annie Girardot

terça-feira, outubro 04, 2005

GARGANTA PROFUNDA, de GERARD DAMIANO estrelando LINDA LOVELACE


No Festival do Rio, o cine Palácio ficou encarregado de boa parte da Mostra Midnight Movies, uma seleção de filmes que têm como temática a interessante e curiosa bizarrice humana. Maníacos, extravagantes e tudo o mais se encontram naquela sala. Na tela e nas poltronas. Como não sou exceção, em plena tarde de sábado, eu entrava no cinema para assistir talvez ao maior clássico do cinema pornô: Garganta Profunda, estrelando Linda Lovelace como Linda Lovelace, assim aparecia nos créditos iniciais. Antes disso, porém, começou a ser exibido um documentário que ninguém sabia dizer a procedência. Conferi o bilhete para ver se não havia comprado, por engano, a sessão Entrando na Garganta Profunda, um documentário sobre o impacto cultural do filme, na década de 70, nos EUA. Não. No meu ingresso e no de todos estava lá aquele título instigante e, imediatamente, entendido com certo ar de riso (para quem nunca ouvira falar do filme): Garganta Profunda. O público não queria documentário coisíssima nenhuma. Queria sim ver o sexo na tela grande. Fetiche, fazer o quê. As luzes então se acendem, entra uma mulher da organização do festival tentando esclarecer que o que estamos vendo é um curta-metragem a respeito do filme e que o dito cujo viria em seguida. Lá atrás, ninguém ouve nada do que ela diz até que um sujeito grita: "Fala mais alto pra eu ver se eu ouvo (seu ovo)!". Piadinha pertinente para o filme que se esperava e não seria necessário dizer que o cinema veio abaixo. A mulher, irritada, foi para o fundo do cinema e explicou tudo de novo: Ahhhh, bom! Agora sim, Linda Lovelace como Linda Lovelace entra em ação. E ela é ela mesma porque o diretor explicou, no documentário que quase foi espinafrado pelos pornófilos da sala, que a garganta profunda é fato. Experiência própria, segundo ele. No filme, a habilidade da mocinha vai sendo provada e aprovada por um sem número de homens, mas só é legitimada depois de o Dr. Young, um médico safadinho, descobrir que Linda não sente prazer durante o sexo vaginal porque seu clitóris está na garganta. Por conta disso, Linda procura um homem que tenha um dote de 20 centímetros, de modo que alcance o tal ponto de prazer e deixe a mulher a soltar foguetes e ver os sinos baterem, como ela própria afirma querer. Enquanto ela não encontra o bem-dotado, o Dr. Young faz a festa dele e a dos outros, contratando Linda como terapeuta para atender em domicílio aos marmanjos que estão dodói. Nas horas vagas, ela satisfaz o patrão que, enquanto faz saliência, registra os diversos casos de cura de seus pacientes decorridas do fenômeno da garganta profunda. A trilha sonora é um primor: músicas, ohh, tão românticas! Uma delas repete o tempo todo "deep throat, deep throat..." num coro tão singelo que dá até vontade de chorar (com duplo sentido, por favor)! Brincadeiras à parte, Garganta Profunda é um clássico do cinema pornô e é pena que hoje não se contem histórias interessantes nos filmes do gênero. Além de ter sido mais relegada do que já era, a produção desse tipo de filme vai desaparecendo dos cinemas. Pra confirmar a fama de cinema-inferninho que o Palácio tem, numa das cenas mais quentes, entra uma negona-grandona-fortona para verificar se tem alguém muito empolgado na poltrona fazendo coisa indevida, sozinho/a ou acompanhado/a. Vai ver alguém anda querendo bater o recorde da Lovelace, que morreu em 2002 e precisa ser substituída. Quem se habilita?

Garganta Profunda (Deep Throat), 1972, EUA, 73 min
Direção e Roteiro: Gerard Damiano
Elenco: Linda Lovelace, Harry Reems, Dolly Sharp, Bill Harrison

sábado, outubro 01, 2005

EROS, de ANTONIONI, SODERBERGH e WONG KAR-WAI


Nostalgia. Quando pensei em Wong Kar-Wai foi essa a palavra que me veio à mente. Lembrei de outros filmes dele. Personagens sofríveis e apaixonantes. O filme de agora, dentro do primeiro dia do Festival do Rio 2005, é Eros, um longa com três histórias dirigidas por homens de filmografias distintas: a primeira é The Dangerous Thread of Things, do cultuado italiano Michelangelo Antonioni: Na Toscana, um casal que se apronta para sair deixa, logo de início, para o espectador, a percepção de uma crise conjugal. O homem se envolve com uma moradora local. O filme, bastante econômico tanto na duração quanto nas ações e palavras, não sente a necessidade de explicar e isso é bom. No final, a amante do marido dança nua e solitária à beira do mar até que Cloe, também nua, se aproxima da mulher, que agora está deitada na areia, e projeta a sombra de seu corpo num outro corpo nu. O encontro dos corpos. Não há música. Poucos sons. Mais tempo para reflexão. Corte. O diretor Steven Soderbergh filma Equilibrium. Robert Downey Jr. é um publicitário que procura um analista para decifrar seu sonho constante com uma mulher que ele não consegue identificar. Toda a cena do consultório é desconstruída por um analista que não tem o mínimo interesse no paciente e pelo paciente que descobre por si mesmo o motivo de tanto atordoamento. Inteligente construção de cores: P&B para o consultório e um azul estonteante para o quarto, os móveis e a luz construída no sonho. Também no sonho, uma câmera pendular e um belíssimo 'jazz cubano' dão o tom perfeito para a cena. Corte. No episódio The Hand, de Wong Kar-Wai, um alfaiate se apaixona pela cliente, uma prostituta de luxo. Um homem que nunca tocou uma mulher não pode ser um alfaiate, diz ela. Ele obedece. Ela o inicia com as mãos. Com as mãos, ele trabalha anos para ela. É somente pelas mãos que ele conhece as medidas exatas do corpo da mulher. Aqui, há muito mais o desejo que o prazer. Há privações e limites corporais conhecidos numa prostituta, como a regra do não beijar. Mas também a impossibilidade de um amor sentido por ele que não pode ser consumado não se sabe por que razão. A prostituta simplesmente não enxerga além das mãos que cuidam para que esteja sempre bela para outros. A melancolia dos personagens, os ambientes lúgubres e a música suave são um convite às lágrimas. Inevitável. Comum aos três filmes, a paixão dos corpos. Parafraseando Manuel Bandeira, os corpos se entendem, as almas, não. Na abertura de cada uma das três histórias, desenhos de corpos se movem suavemente em texturas vermelhas, amarelas, azuis, pretas... Nessas aberturas, uma música que, ainda agora, me toma a concentração: "Michelangelo Antonioni", cantada, numa voz ecoada e envolvente como um canto de sereia, por Caetano Veloso ("visione del silenzio / angolo vuoto / pagina senza parole / una lettera scritta sopra un viso / di pietra e vapore / amore / inutile finestra" do disco Noites do Norte). Nos créditos, as pessoas aplaudem o nome de Caetano. Meu aplauso vai para tudo que vi, ouvi e senti desde quando as luzes se apagaram. Saio do Paissandu conversando com meu amigo sobre a geração de cinéfilos que o mítico cinema formou, principalmente, na década de 60. Na saída, encontro de velhos e jovens, chão molhado da chuva que já passou, trânsito, metrópole. Num bar ao lado, uma mulher, acompanhada de um homem, toca, melancolicamente, um xilofone. De novo, nostalgia. Seguimos.

Eros, Hong Kong/EUA/Itália/China/França/ Luxemburgo/Inglaterra, 2005, 100 min
Direção: Michelangelo Antonioni, Steven Soderbergh, Wong Kar-Wai
Roteiro: Michelangelo Antonioni, Tonino Guerra, Steven Soderbergh
Elenco: Gong Li, Chang Chen, Alan Arkin, Luk Auntie, Christopher Buchholz, Robert Downey Jr., Ele Keats