quarta-feira, novembro 29, 2006

AMANTES CONSTANTES, de Philippe Garrel


Alguma coisa acontece no meu coração para que num texto sobre Amantes Constantes eu trate primeiro de acontecimentos extra filme visto que o filme de Philippe Garrel foi neste ano o mais esperado por mim. O motivo é um protesto-indignação: na sala do Artplex, ao entrar, quase não vejo pessoas da minha idade, mas velhinhos mil. E aí penso: "um bom público", mas que nada. Livrar-se da pipoca e dos barulhos de comida dos adolescentes não significa necessariamente uma sessão sem incômodos. Os velhinhos conversam sem parar e preciso apelar para o repressor "Shhh". Com duas horas e meia de filme começa uma debandada. Com o fim da sessão (três horas de duração), duas senhoras reclamam pelo fato de a administração do cinema não tê-las avisado da duração do filme. E precisa? Por acaso alguém costuma ser levado à força ao cinema, sem nenhuma informação do que assistirá em seguida? Por acaso alguém está passando por lavagens cerebrais por meio do cinema tal qual Alex, em Laranja Mecânica? Sou eu obrigado a ficar ao lado de um senhor que atende o celular por seis vezes para dizer que não pode falar agora? O público, às vezes, parece desprovido da capacidade de fruição cinematográfica.

Quanto a Amantes Constantes, é curioso que Louis Garrel apareça em dois filmes que retratam a mesma época, mas seguem caminhos diferentes. Se em Os Sonhadores Bernardo Bertolucci opta por um distanciamento do passado que resulta em mitificação do período tal como nós, jovens, temos nostalgia da mesma década de 60, esta que não vivemos - e que, por isso mesmo, ganha um tom saudosista e irreal - , por outro lado, Philippe Garrel aproxima o olhar e foca sua câmera num fragmento iniciado em 1968 e que, se era sólido, agora se desmancha no ar, parafraseando Marx.

Menos fantasioso. mais real. A começar pela fotografia dura em P&B, que não faz concessões (em alguns momentos os tons cinzas são quase eliminados do fotograma, cedendo ao preto e ao branco. Fotografia poética e adequada à proposta), o filme de Garrel caminha em sentido inverso ao de Bertolucci (Em Os Sonhadores a alienação interrompida que leva os personagens às ruas em Maio de 68 se dá menos pelo desejo de revolução política e cultural e mais por conflitos internos do triângulo amoroso). Em Amantes Constantes, se há o inconformismo dos jovens na primeira hora (bem apoiado numa longa, silenciosa e reflexiva cena de barricada), esse espírito rebelde logo cede à alienação do ópio e à recusa do real através da arte (pintura e poesia) e do amor (de todas as formas). Nesse sentido, o filme de Philippe Garrel ganha um viés mais político. Já é sintomático que a linha narrativa do relacionamento entre François (Louis Garrel) e Lilie (Clotilde Hesme) seja descontinuada e fragmentada por um estado das coisas que pede por mudanças. O final poético e, quem sabe, redentor, está mais para a máxima de Karl Marx, já citada acima.


Amantes Constantes (Les Amants Réguliers) França, 2005, 178min Direção e roteiro: Philippe Garrel Fotografia: William Lubtchansky Edição: Françoise Collin e Philippe Garrel Elenco: Louis Garrel, Clotilde Hesme, Julien Lucas, Eric Rulliat, Nicolas Bridet, Mathieu Genet, Raïssa Mariotti

quinta-feira, novembro 02, 2006

DUBLÊ DE CORPO, de Brian De Palma


Já havia dito num post sobre Dália Negra que Brian De Palma é um diretor da categoria mestre, aquele que não é inventor de linguagens e estéticas, mas que segue a cartilha de alguns diretores. Dublê de Corpo é um filme interessante porque permite assistir a uma releitura dos clássicos. No caso, Alfred Hitchcock. Não entro no mérito das qualidades, mas De Palma faz uma clara homenagem ao mestre do suspense. Em Dublê de Corpo, o ator Jake Scully tem a oportunidade de espiar da janela a vida alheia, tal qual o fotógrafo Jeff faz em Janela Indiscreta. Aqui, entretanto, a diferença é que o voyeur tem a mobilidade para sair da casa e tentar salvar uma mulher de um assassinato. É nessa trajetória de Jake que vamos percorrendo um outro caminho da filmografia hitchcockiana. Afinal, é impossível não assistir a claustrofobia de Jake e os planos de câmera vertiginosos do túnel que desnorteiam o personagem e não lembrar de Um Corpo que Cai (Vertigo). Sem falar nos sustos causados pela trilha sonora aguda que muito faz lembrar o parceiro de Hitchcock Bernard Herrmann. À parte os anos 50 e 60 de Hitchcock, Dublê de Corpo tem também aquela estética dos anos 80, meio punk meio glitter, operando como reflexo da época para uns e cafonice para outros. Trash, pop, terrir e nudez atípica para um diretor respeitado. Ousadia tinha nome.


Dublê de Corpo (Body Double) EUA, 1984, 114min Direção: Brian De Palma Roteiro: Brian De Palma e Robert J. Avrech Edição: Jerry Greenberg e Bill Pankow Fotografia: Stephen H. Burum Música: Pino Donaggio Elenco: Craig Wasson, Deborah Shelton, Melanie Griffith, Gregg Henry

PEQUENA MISS SUNSHINE, de Jonathan Dayton e Valerie Faris


Pequena Miss Sunshine é um filme que teve pouca divulgação, mas depois de assisti-lo, aposto minhas fichas: quase todo o público sai da sala com a alma lavada. Afinal, em algum momento da vida, até o mais competitivo profissional de qualquer área, sente-se pressionado, estressado e cansado por tanta cobrança. Pequena Miss Sunshine fala do fracasso. Todos os seus personagens são perdedores. Mas perdedores de um sistema norte-americano em que tudo e todos precisam se encaixar num ranking. O chefe da família sofre porque não consegue emplacar sua cartilha de "9 passos para vencer na vida", o cunhado, um professor universitário, tentou o suicídio depois de perder o namorado e de ter perdido o posto de maior especialista em Marcel Proust, nos Estados Unidos, o filho faz voto de silêncio até que consiga realizar o sonho de ser piloto de avião, plano que será frustrado mais adiante, e Olive, a estrela da casa, brilha somente... em casa. O fato de o próprio Proust ser considerado um fracassado em vida, mas, paradoxalmente, ser autor do maior romance do ocidente (em páginas e no valor literário) denuncia que algo está errado no modo de classificar os erros e os acertos na vida.


Pequena Miss Sunshine (Little Miss Sunshine) EUA, 2006, 101min Direção: Jonathan Dayton e Valerie Faris Roteiro: Michael Arndt Fotografia: Tim Suhrstedt Edição: Pamela Martin Elenco: Abigail Breslin, Greg Kinnear, Paul Dano, Alan Arkin, Toni Collette, Steve Carell

domingo, outubro 08, 2006

VOLVER, de Pedro Almodóvar

Volver, o novo filme de Pedro Almodóvar, surpreende pelos retornos do cineasta. Retorno a sua parceria profissional com Carmen Maura, atriz que não aparecia desde Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1989) e retorno do humor, que já estava fazendo falta. Já o vermelho, estética poucas vezes abandonada por Almodóvar em seus filmes, continua vibrante. O vermelho de Almodóvar, com mais ênfase agora em Volver, é a representação ambígua do amor e da morte, temas fortes no filme. O vermelho em close numa banca de tomates, no sangue que escorre do homem morto, no carro de Sole (Lola Dueñas), a irmã de Raimunda (Penélope Cruz). O vermelho é a cor do cinema de Almodóvar. O Mateus, do blog Cinema Mon Amour, chegou a evocar Gritos e Sussurros, do Bergman: pelo vermelho e pela cumplicidade feminina de Volver, que alude ao confinamento das mulheres no filme de Bergman. Mestre do melodrama contemporâneo, Almodóvar faz homenagem justa a Visconti, quando o clássico do melodrama Belíssima está sendo exibido na TV. Apesar de Volver ser imperdível, não senti o arrebatamento dos últimos filmes do diretor vistos no cinema. De todo modo, só a persona de Penélope Cruz já vale o ingresso.


Volver (Volver) Espanha, 2006, 121min Direção e roteiro: Pedro Almodóvar Elenco: Penélope Cruz, Chus Lampreave, Carmen Maura, Lola Dueñas, Blanca Portillo, Yohana Cobo

quarta-feira, outubro 04, 2006

O GRITO DAS FORMIGAS, de Mohsen Makhmalbaf


Vi numa aula de cinedocumentário o filme Salve o Cinema e isso foi o bastante para que eu estivesse ansioso com o novo filme do diretor iraniano Mohsen Makhmalbaf. Em O Grito das Formigas um casal iraniano vai passar a lua de mel na Índia. Lá a cultura vai levá-los a discordar em diversos pontos. A câmera de turista dele flagra a fome, a miséria e a dela, a beleza, a diversidade de cores e aromas. São olhares diferentes. Enquanto o marido cético tem o ideal do comunismo, a mulher crê nas pequenas alegrias dos pobres e no socialismo divino. Enquanto ela prega Gandhi, ele acusa o líder de ter defendido os ricos e ter transformado a não-violência em um ato de violência, colocando o povo adormecido. O que os une é procura do Homem Perfeito, uma entidade humana que lhes dará algum caminho ou lhes dirá alguma mensagem.


O Grito das Formigas (Shaere Zobale-Há / Scream of the Ants) Índia, 2006, 85min Direção e roteiro: Mohsen Makhmalbaf Elenco: Mahmoud Chokrollahi e Mahnour Shadzi

quarta-feira, setembro 27, 2006

NÓS ALIMENTAMOS O MUNDO, de Erwin Wagenhofen


Documentário austríaco inteligente e conciso que investiga a indústria do alimento na Europa e em alguns outros lugares do mundo, como no Brasil. É interessante ver, por exemplo, o executivo de uma empresa de sementes híbridas que defende o cultivo de sementes orgânicas e a agricultura de subsistência. Altamente contraditório, e por isso mesmo, com grande força argumentativa. No Brasil, uma amostra da destruição da Amazônia a partir do cultivo de soja. Diga-se de passagem: o maior destruidor da floresta e maior exportador de soja chama-se Blairo Maggi, governador do Mato Grosso. Ao abordar o mercado da carne de frango o filme se aproxima muito de A Carne é Fraca, documentário brasileiro interessante para a compreensão do funcionamento e dos custos inimagináveis do gado e das aves. O desfecho com o depoimento do Presidente da Nestlé é, sem dúvida, o clímax do filme. As declarações do sujeito fazem a platéia xingar e vaiar. Imperdível.


Nós Alimentamos o Mundo (We Feed the World) Áustria, 2005, 96min Direção: Erwin Wagenhofer

O ILUSIONISTA, de Neil Burger

O que me levou a ver um filme com esse nome foi a curiosidade pela história e o misticismo com o horário da sessão: Meia-noite. Mas lembrei também da cena de ilusionismo em Cidade dos Sonhos, do David Lynch. O Ilusionista é baseado num conto homônimo do escritor americano Steven Milhauser e narra a história de Eisenheim, um mágico que passou a vida excursionando com seus números pelo mundo e agora retorna à Viena na esperança de rever um amor da infância. O filme é romântico, mágico, extremamente sutil, excelente direção e elenco (destaque para Edward Norton e Paul Giamatti), direção de arte impecável (a história se passa no início do século XX), fotografia esplendorosa e música com um adjetivo de alto quilate: Philip Glass (o filme não seria o que é sem a música). O Ilusionista não é um filme para o grande público, não tem uma grande história, mas é muito sofisticado na forma e no conteúdo.

O Ilusionista (The Illusionist) EUA, 2006, 110min Direção e roteiro: Neil Burger Direção de arte: Ondrej Nekvasil Fotografia: Dick Pope Música: Philip Glass Elenco: Edward Norton, Jessica Biel, Paul Giamatti, Rufus Sewell

FONTE DA VIDA, de Darren Aronofsky

Uma idéia interessante que se transformou num filme extremamente irregular. A passagem de um homem por três épocas diferentes, tendo como eixo sua mulher e a busca pelo mistério da vida. Na primeira fase, no século XVI, o ator Hugh Jackman interpreta um guerreiro defensor da rainha da Espanha (Rachel Weisz atua bem e não tem culpa de interpretar uma rainha espanhola de língua inglesa... quanto mau gosto!), na segunda, tempos atuais, ele é um cientista que busca a vida eterna nos laboratórios enquanto a mulher sofre de câncer (esta é, sem dúvida, a fase menos ruim do filme) e na última fase, século XXVI, um astronauta (bem, o roteiro diz astronauta, mas para mim ele é um místico em busca do nirvana) que busca o elixir da vida. A tentativa de fazer as três histórias se entrecruzarem é um desastre. O diretor cria situações e encenações forçadas. Pra mim, o filme ficou no campo do incompreensível.


Fonte da Vida (The Fountain) EUA, 2006, 96min
Direção e roteiro: Darren Aronofsky Elenco: Hugh Jackman, Rachel Weisz

C.R.A.Z.Y., de Jean-Marc Vallée

De todos os filmes que assisti até agora no Festival do Rio 2006, esse é o filme sensação. O efeito dele no público é parecido com o de Adeus, Lenin! no Festival de 2003. Em C.R.A.Z.Y. a trama se aproxima ainda mais do público e, por isso, ganha mais simpatia. Estão lá o intelectual vítima de chacotas, o esportista, o rebelde e o gay. Sim, é um filme com personagens estereotipados, mas isso não reduz em nada o prazer de ver um filme tão bonito, emocionante e divertido. A trama acompanha a trajetória de vida de Zac, o quarto filho, (Z, a quarta letra de CRAZY), da infância à fase adulta. As descobertas e o crescimento de Zac seguem em paralelo a um dom especial que ele tem desde seu nascimento. Além disso, o que difere Zac dos outros meninos é a sexualidade. Esse é um dos problemas que ameaçam desestruturar o núcleo familiar. Trilha sonora muito bem utilizada: Pink Floyd, Patsie Cline, Rolling Stones, David Bowie. Vou postar um texto maior quando o filme for lançado no Brasil, em novembro.


C.R.A.Z.Y. - Loucos de Amor (C.R.A.Z.Y.) Canadá, 2005
Direção: Jean-Marc Vallée.
Com Marc-André Grondin, Michel Côté, Danielle Proulx, Émile Vallée, Pierre-Luc Brillant, Maxime Trembley, Alex Gravel, Natasha Thompson, Johanne Lebrun, Mariloup Wolfe, Francis Ducharme, Hélène Grégoire.

A PONTE, de Eric Steel

Se eu resolvesse pegar uma câmera e sair por aí procurando as causas do suicídio a partir dos depoimentos de parentes e amigos dos suicidados, eu teria um filme como A Ponte. Acontece que sendo assim, o filme torna-se genérico e clichê demais. Tendo como foco a ponte Golden Gate, em São Francisco, lugar onde mais ocorrem suicídios em todo o mundo, o documentário perde quando deixa de refletir sobre os porquês da freqüência de suicídios naquele local e parte para os depoimentos que nada acrescentam ao filme. O diretor perdeu a oportunidade de fazer um filme mais subjetivo, reflexivo e inteligente. Num único momento, já nos minutos finais, uma depoente relaciona o desejo de dar fim à vida na Golden Gate a um romantismo destrutivo e, por isso, semelhante ao romantismo em torno do álcool. Mas aí já é tarde. Um único depoimento não pode salvar um filme tão ruim.

A Ponte (The Bridge) EUA, 2006, 93min
Direção: Eric Steel

A ÚLTIMA NOITE, de Robert Altman

Tinha muita expectativa com o novo filme de Robert Altman. Fiquei maravilhado com o plano inicial de uma lanchonete à noite que parecia ter sido pintado por Edward Hopper tal era a melancolia e a beleza da luz. Mas foi só isso. O que veio depois foi um sem fim de músicas e jingles de produtos em homenagem ao programa americano de rádio "A Prairie Home Companion". Não acreditei muito que estava diante de um musical meio gospel meio caipira. A trama é o de menos: cantores e locutores da rádio tristes por estarem apresentando o último programa. Entre uma música e outra, os conflitos, as piadas e as lembranças nos bastidores. Não há um roteiro decente. O que poderia ser um filme bonito se tornou um filme cafona. Meryl Streep, Woody Harrelson e Robert Altman. Isso não é o suficiente para me fazer rever esse filme. Uma besteira só. Altamente não recomendável.


A Última Noite (A Prairie Home Companion) EUA, 2006, 103min Direção: Robert Altman Roteiro: Garrison Keillor Elenco: Kevin Kline, Meryl Streep, Lily Tomlin, Woody Harrelson

sábado, setembro 23, 2006

MEDO E OBSESSÃO, de Wim Wenders


Engana-se quem pensa que a guerra surgida na esteira do pós 11 de Setembro está fora do território norte-americano. Em Medo e Obsessão Wim Wenders quer provar que a paranóia dos Estados Unidos transformou a própria nação num campo de batalha. As reminiscências do passado surgem na figura do Sargento Paul, veterano da Guerra do Vietnã, que se crê como a força que vai defender os americanos de ataques que até hoje o governo e os militares não conseguiram identificar a origem. Paul vive num itinerário constante pelas ruas, dentro de uma van equipada de câmeras, gravadores, rádios e todo um aparato tecnológico para espionar elementos suspeitos (leia-se árabes). Na placa de sua van, uma frase: "Unidos nos levantamos". No rádio, um locutor que lê os jornais e anuncia com ironia a inutilidade de tantas informações, já que são mais e mais mentiras vindas da imprensa.

Enquanto isso, Lana vem do Oriente Médio, depois de ter passado muitos anos fora. Traz esperança e a expectativa de encontrar coisas boas em seu país. O que encontra nos subúrbios de Los Angeles é a miséria e o tio Paul, um lunático que oscila entre o patriotismo incomparável dos americanos e a típica ignorância de que são acusados por não conhecerem o que se passa além da fronteira nacional. Lana tenta um reencontro com o tio, mas ele a repele. O que finalmente os une é o assassinato de um homem de etnia árabe que dormia no mesmo abrigo em que Lana se hospeda temporariamente. Paul desconfia do árabe. Paul, assim como as atitudes do governo americano, considera que nada é uma coincidência, mas um sinal. Todos são suspeitos. Tudo precisa ser vigiado. A propósito, o filme de Wim Wenders começa transmitido por uma câmera de vídeo. O que vemos é o que a câmera de Paul flagra. Essa imagem de vídeo menos nítida que a película cinematográfica pode ser interpretada como a câmera de Paul, mas quando essa estética passa a ser a fotografia permanente do filme, pode se pensar que Wim Wenders procura uma aproximação com o documentário. É para dizer que o que ele filmou está tão próximo da realidade que a diferença entre ficção e documentário é o que menos importa.

Quanto ao árabe morto, Paul descobre que não havia nenhum fato suspeito ligado a ele. O que existe é o passado do Vietnã aterrorizando o presente do 11 de Setembro, é o medo de repetir a derrota (derrota que Paul desconhece). Há em Medo e Obsessão metáforas interessantes para falar de uma mídia monopolizada pela idéia de terrorismo eminente, como a velhinha que não consegue se levantar da cama para mudar o canal da televisão. Ela tem em suas mãos o controle remoto, mas este não muda o canal, só altera o volume. O que ela é obrigada a ver é um discurso de George W. Bush.

Depois de constatada a paranóia a respeito do árabe, Paul entra num bar chamado "Finish Line". Lana não foi contaminada pelo discurso do tio porque conheceu países bem diferentes do seu. E parece ser esse, talvez, um antídoto anti-etnocêntrico. Não querer a morte de mais pessoas em nome das que morreram no World Trade Center.

Esse filme seria cômico se não fosse trágico. Mas se Wim Wenders pareceu querer fazer escárnio com os Estados Unidos, na verdade isso foi uma primeira impressão. O que ele fez foi uma grande homenagem ao país. Além de todo o desfecho da história, o movimento final de uma câmera que parte do vazio deixado pelo WTC e vai subindo até o azul celeste parece apontar para a vontade de superação e a constatação de que estamos todos sob o mesmo céu.

Obs1.: Wim Wenders continua seguindo a trilha das boas músicas. O som agora é Travis.

Obs2.: Mais uma constatação da idéia do filme. O título traduzido literalmente é Terra de Abundância.

Medo e Obsessão (Land of Plenty) Alemanha / EUA, 2004, 123 min
Direção: Wim Wenders
Roteiro: Wim Wenders e Michael Meredith
Fotografia: Franz Lustig
Edição: Moritz Laube
Elenco: John Diehl, Michelle Williams, Shaun Toub, Wendell Pierce, Richard Edson, Burt Young

quinta-feira, setembro 21, 2006

DÁLIA NEGRA, de Brian De Palma


No cinema, a narrativa em flashback é a mais utilizada quando se quer remeter ao passado, sem estar exatamente no passado. Ainda não inventaram ou não popularizaram um formato diferente. O excesso de flashbacks pode destruir um bom filme (uma observação é que, por analogia, na vida real, voltar ao passado, remoer acontecimentos também pode ser destrutivo para quem o faz). A despeito dessa possibilidade, com toda a quantidade de flashbacks de Dália Negra, este novo filme de Brian De Palma passa ao largo do medíocre. E qual seria a saída para contar uma história passada na década de 40 senão trabalhar com a estética fílmica de 40? Isso não é nenhuma novidade. Também não é novidade a narrativa clássica que Brian De Palma dá ao filme. É também assim que se conta uma história nos tempos áureos da Hollywood. Não há, portanto, na direção de Dália Negra um cineasta inventor, mas um cineasta mestre, para ficar nas divisões propostas pelo crítico José Lino Grunewald. Ao mostrar o seu potencial para fazer um revival dos filmes noir, Brian De Palma mostra que aprendeu bem a lição com os inventores.
Como em Os Intocáveis, estão lá os móveis e as paredes em madeira e o facho de luz diurna que penetra o departamento de polícia. De filme noir, talvez o mais marcante seja a forma como os personagens são explorados. A persona do policial, que por si só já é um elemento constante do noir, está aqui encarnada na dupla Bucky Bleichert (Josh Hartnett) e Lee Blanchard (Aaron Eckhart). No passado, ambos lutaram como boxeadores (The Ice e The Fire, respectivamente). Agora, uma luta entre os dois para promover reivindicações da corporação policial faz brotar uma relação de amizade, além da parceria de profissão. Assim, Bucky é trazido para a casa de Blanchard e apresentado à sua mulher, a sensual Kay Lake (Scarlett Johansson), personagem que está no limiar entre a femme fatale e a mocinha salva pelo herói. Está formado um triângulo amoroso em potencial que resiste à explosão. Femme fatale mesmo é Madeleine Linscott (Hilary Swank), personagem-chave para o desencadeamento da trama.
Ter como cenário a Hollywood é ponto de partida para a metalinguagem: 1) procura-se o autor do brutal assassinato da atriz Elizabeth Short, a Dália Negra. 2) O roteiro, baseado no romance homônimo de James Ellroy (mesmo autor de Los Angeles - Cidade Proibida) vai mais fundo nas referências, associando o filme O Homem que Ri (1927) às pistas para a descoberta do assassino (curiosidade: o ator de O Homem que Ri, filme de Paul Leni, é Conrad Veidt, o sonâmbulo de O Gabinete do Dr. Caligari). 3) a cena final de Ramona Linscott (Fiona Shaw) é uma clara alusão à cena final de Norma Desmond, a diva de Crepúsculo dos Deuses, quando surge no patamar superior da escadaria. Ambas reivindicam a exclusividade das luzes da ribalta. E por último, uma excelente frase (mais compreensível no contexto do filme) pronunciada por um personagem diante do corpo da Dália: "Hollywood usa você quando mais ninguém usa".

Dália Negra (Black Dahlia) EUA, 2006, 121 min
Direção: Brian De Palma
Roteiro: Josh Friedman, baseado no romance homônimo de James Ellroy
Fotografia: Vilmos Zsigmond
Direção de arte: Pier-Luigi Basile / Christopher Tandon
Edição: Bill Pankow
Elenco: Josh Hartnett, Scarlett Johansson, Aaron Eckhart, Hilary Swank, Mia Kirshner, Mike Starr, Fiona Shaw, Patrick Fischler

terça-feira, setembro 05, 2006

O TEMPO QUE RESTA, de François Ozon


Apesar de gostar muito dos filmes do François Ozon, fui assistir a O Tempo Que Resta com um pouco de resistência à história. Soa clichê demais um jovem com câncer generalizado, em estado terminal, que se revolta contra todos. Mas é isso mesmo. O desafio de Ozon me lembra, em diferentes proporções, o desafio de Flaubert, escrito por ele mesmo no prefácio de Madame Bovary: "andar sobre o fio de um cabelo, dependurado entre o duplo abismo do lirismo e da vulgaridade (que quero fundir numa análise narrativa)". É isso o que me atrai nos filmes do Ozon. A releitura dos clichês. O risco de ser ridículo. É por isso que o novo filme, assim como este último que postei, consegue passar pelo melodrama sem se prender nele. Inclusive algumas cenas de flashback, em que o menino Romain é beijado no rosto por um outro menino, me lembraram Almodóvar, mais especificamente em Má Educação. A descoberta do câncer aos 31 anos leva Romain a um outro chavão: romper com namorado e brigar com todos ao seu redor.

O tom do filme muda com a entrada de Jeanne Moreau. O tom do filme e a minha percepção. Pois comecei a ver O Tempo Que Resta com outro olhar. A questão do tempo, explorada na tela, para mim se deu primeiro fora do filme. É porque comecei a pensar no potencial do cinema. É porque lembrei que há menos de duas horas, naquele mesmo dia, num outro cinema, a alguns poucos quilômetros daquele onde eu estava, Jeanne Moreau fazia graça como a graciosa Catherine, de Jules et Jim. Como pode Jeanne deslocar 40 anos em menos de duas horas? O tempo do cinema foi imprescindível para isso. É uma pergunta com resposta óbvia, mas que instiga o pensamento. E foi assim que entrei no filme. Emocionado em ver Moreau com o mesmo olhar encantador e beleza diferente, agora coberta pelas marcas do tempo.

Foi o tempo também que fez Romain lamentar a diferença de idade entre ele e a avó. Caso contrário, teriam se casado, tamanha a semelhança de idéias. A maior semelhança, conforme Romain confessa à avó, é que ambos morrerão em breve. Ela, pela velhice. Ele, pelo câncer. Mas Moreau entra só para dar a virada. Sai logo de cena.

Romain, fotógrafo de moda, deixa o emprego. Agora fotografa na câmera amadora cenas do cotidiano. Guarda para si imagens simples, como a da irmã brincando com os filhos numa praça. Romain passa a aproveitar seus últimos meses de vida. Recebe num café um convite inusitado para um ménage à trois para fins de reprodução. A garçonete Jany, interpretada por Valeria Bruni Tedeschi - atriz que teve a performance elogiada no último filme de Ozon - procura alguém que a fecunde com o consentimento do marido, já que este é infértil. Passando pelo contra-luz muito bem cuidado (Ozon filma com muito apuro) ao constrangimento que os atores dão aos três personagens, o ménage à trois é um dos melhores já feitos no cinema.

Um filme que teria a morte como desfecho esperado, cria uma situação de incerteza semelhante a Sob a Areia, outro filme de Ozon. A beleza da cena final perdura como a estada de Romain, deitado na areia da praia, com pessoas ao seu redor, primeiro se divertindo, conversando, brincando e, aos poucos, voltando para suas casas. O sol se pondo sobre o mar e a tela escurecendo.

O Tempo que Resta (Le Temps Qui Reste), França, 2005, 85 min Direção: François Ozon Roteiro: François Ozon Fotografia: Jeanne Lapoirie Edição: Monica Coleman Elenco: Mevil Poupaud, Jeanne Moreau, Daniel Duva, Valeria Bruni Tedeschi

sábado, julho 22, 2006

O AMOR EM CINCO TEMPOS, de François Ozon


A narrativa cinematográfica contemporânea já mergulhou à exaustão no curso não-linear da história. Muitas vezes não fica claro porque o diretor decide montar o filme fora da cronologia linear. Mas há os exemplos interessantes, como 21 gramas, Amores Brutos e Irreversível. Em O Amor em Cinco Tempos, entretanto, em si, a montagem de trás para frente fala menos que o efeito produzido pela mesma. Não quer dizer que a montagem seja pouco significativa, mas que o resultado alcançado por Ozon se livra de qualquer virtuosismo meramente técnico. Contar de trás para frente a história de desapaixonamento entre Gilles e Marion provoca e revela a vontade de Ozon de amenizar o impacto de um fim de caso. Ou tudo isso pode simplesmente ser lido como ironia do diretor. Considerando-se a primeira hipótese, já que a segunda não produziria muito assunto, o filme de Ozon parte de uma imagem corriqueira nos dias atuais: marido e mulher, sentados diante de um juiz, ouvindo as novas regras, os valores da pensão e os horários que deverão estar com os filhos. No caso de Gilles e Marion, o filho Nicolas. Ainda nesta primeira esquete, depois do divórcio, a frase "Você quer tentar mais uma vez?", pronunciada pelo marido à mulher, por um momento insinua uma estranha reconciliação num quarto de hotel onde Gilles e Marion se escondem, fugindo do peso da palavra casamento. A iluminação sobre personagens e objetos é tão fria quanto a infeliz tentativa da relação sexual (ver foto acima). Na segunda parte, Marion, Gilles, o irmão homossexual dele e o namorado - bem mais novo que ele, por sinal - conversam sobre sexo, compromisso, fidelidade. E aí que começa a ser desenhada a visão que teremos do relacionamento de Gilles e Marion: ele confessa ao irmão que já traiu Marion com mulheres e homens (na época, ambos estavam numa festa que, ao final, se tornou uma orgia. Marion preferiu ficar de fora; Gilles pediu o consentimento da mulher e esta deixou que o marido tomasse a decisão). Na terceira parte, Marion está grávida. Nesse episódio o sentimento de Gilles em relação à mulher torna-se ainda mais questionável. Gilles simplesmente deixa Marion sozinha na maternidade. Não consegue se aproximar da mulher. O que fica explícita é a ausência e a incapacidade de Gilles de estar presente em importantes momentos do casal: a lua de mel, o nascimento do filho. Na quarta parte do filme (ou segunda, na cronologia do casal), a cena do casamento de Gilles e Marion. Ao final da festa, no quarto de hotel, a lua de mel do casal é relegada por Gilles, que dorme em sono profundo. Marion sai para arejar a cabeça e tem a oportunidade de vingar-se do marido, traindo-o com um americano que tenta forçá-la a ter relação sexual com ele. Na quinta e última parte, quando Marion e Gilles iniciam um relacionamento amoroso, a música pop italiana que costurou o filme tem sua razão de ser: o então jovem Gilles passa férias na Sicília, acompanhado da namorada Valérie, quando encontra a colega de trabalho Marion. A partir daí a relação de Gilles com Valérie começa a se desfazer e dá lugar ao interesse dele por Marion. Na cena final, Gilles e Marion caminham na beira da praia, em direção ao infinito, num cenário paradisíaco, propositadamente clichê ao extremo. Mas o encanto, o infinito, só podem mesmo ser traduzidos pelo "que seja eterno enquanto dure" porque para nós, espectadores, já acabou há uma hora e meia.

P.S.: François Ozon, na minha opinião, é um dos maiores destaques do cinema francês atual. Gosto do tão criticado, mas para mim enigmático Swimming Pool, do bem-humorado 8 Mulheres e considero Sob a Areia um dos melhores filmes neste ano.


O Amor em Cinco Tempos (5 x 2 - Cinq foix deux), França, 2004, 90 min Direção: François Ozon Roteiro: François Ozon e Emmanuèle Bernheim Fotografia: Yorick Le Saux Edição: Monica Coleman Elenco: Valeria Bruni Tedeschi, Stéphanie Freiss, Géraldine Pailhas, Françoise Fabian, Michael Lonsdale, Antoine Chappey, Marc Ruchmann, Yannis Belkacem, Nínon Brétécher

sexta-feira, maio 26, 2006

Notas dos filmes lançados em abril de 2006

A Liga dos Blogues Cinematográficos do qual este blog faz parte atribui notas aos filmes lançados a cada mês. Neste ranking, votam todos os membros da Liga. Reproduzo minhas notas para os filmes que assisti:

Brasília 18%, Nelson Pereira dos Santos, Brasil - nota: 7 (É interessante o potencial de fuga do realismo num lugar que vemos todos os dias nos jornais. Mas parece que o filme morre na praia. É bom, mas não empolga.)

Bonecas russas, Cédric Klapisch, Fra/Ing - nota: 6,5 (História do carinha bonitinho que vai ficando com várias menininhas e vai crescendo com as perdas. Comédia romântica que te permite conhecer vários lugares da Europa.)

Irma Vap, Carla Camurati, Brasil - nota: 3 (Recomendo que assistam, mas pelo Marco Nanini em brilhante atuação. Não me responsabilizo pelo resto.)

A lula e a baleia, Noah Baumbach, EUA - nota: 9 (O mérito está no desafio de trabalhar com um tema clichê e fazer um filme muito interessante e inteligente.)

Árido Movie, Lírio Ferreira, Brasil - nota: 9 (É bom ver, ainda que isso seja raro no cinema brasileiro atual, a incursão num nordeste de choques e contrastes, realista e imaginário ao mesmo tempo, mas diferente.)

V DE VINGANÇA, de James McTeigue


Todas as vezes em que assisto a um filme "made in USA" que aponta para idéias revolucionárias fico pensando nos executivos da indústria cinematográfica de Hollywood receosos do efeito do filme no espectador: se ele vai suscitar o espírito inconformado que está adormecido ou se as coisas vão continuar como estão, ou seja, o espectador, anestesiado que está pelos discursos que defendem o sistema que rege a vida em sociedade, vai levantar da poltrona nos créditos finais e seguir para casa como se nada tivesse acontecido. Se se pensar positivamente, talvez o diretor e o roteirista tenham mesmo uma idéia de fazer as pessoas saírem do status quo. Mas Hollywood certamente não pensa assim. Hollywood é parte do que chamamos de cultura de massa e por isso tem a tarefa de englobar todo o tipo de discurso político, social ou cultural alternativos e torná-los mais uma arma de argumentação para a venda desenfreada de seu produto. Basta olhar para o punk chique ou para a cópia ad nauseam que fizeram da sociedade alternativa da década de 60. A crítica pesada a Hollywood não é de ordem puramente estética (apesar do excesso de blockbusters, a produção americana é muito boa, sim), mas política (o cinema americano é responsável pelo sufocamento paulatino da produção cinematográfica mundial ao longo de décadas). Hollywood, curiosamente, come poeira da Índia, a Bollywood, que produz mais de 800 filmes por ano e tem público médio de 2,8 bilhões de espectadores contra a média americana de 500 filmes anuais e 1,6 bilhões de espectadores, mas nem por isso deixa de ser a principal referência no imaginário cinematográfico da maioria.

Ok, ok. Eu paro de divagar, mas pensei em tudo isso depois de assistir à V de Vingança porque, a despeito de todas as infidelidades cometidas pelos roteiristas em relação à história original (os quadrinhos da DC Comics), como apontam os mais críticos, acho que a produção da Warner cumpre seu papel fazendo as pessoas discutirem, por exemplo, a pertinência de uma cena em que um trem recheado de dinamites explode o Big Ben (queria ver a cara do Tony Blair e da Rainha Elizabeth nessas horas). Através de um enredo que se volta a um passado de 400 anos, quando em 1605 o conspirador Guy Fawkes tentou explodir o parlamento inglês e destituir o rei James, e a um outro passado mais recente, quando V esteve encarcerado como vítima de experiências de médicos muito semelhantes aos do regime nazi-fascista, V de Vingança narra a história de seu personagem-título na tentativa de derrubar o governo totalitário que está tomando conta da vida da sociedade por meio de câmeras em todos os lugares (com o velho discurso da segurança pública) e controle absoluto da mídia (bem no nível de Mussolinis, Stalins e Berlusconis).

O ponto central da idéia de V para derrubar o poder do Estado e fundar a ideal sociedade anarquista reside em não mostrar seu rosto, sua identidade, mas passar às massas como uma idéia porque são estas que sobrevivem e não os homens. É esse argumento do homem cuja máscara reproduz a face de Guy Fawkes que proporcionará o final apoteótico do filme: a chegada dos mascarados ao Parlamento inglês. Por outro lado, fiquei me perguntando se a revolução agora tem que partir de cima já que as pessoas entraram num nível de consciência homogêneo e, sobretudo, bastante dirigido pelos governos e pelas mídias. Além disso, todo o trabalho feito por V para alcançar a população talvez não fosse possível sem uma grande movimentação financeira. Pergunta que vem à tona: "o poder emana mesmo do povo?".

Enfim, com toda a narrativa folhetinesca, citando, inclusive uma versão cinematográfica de "O Conde de Monte Cristo", um dos maiores folhetins de Alexandre Dumas, V de Vingança entra no gênero cinema-pipoca-que-faz-pensar.


V de Vingança (V for Vendetta), EUA / Alemanha, 2006, 132minDireção: James McTeigueRoteiro: Andy Wachowski, Larry WachowskiFotografia: Adrian BiddleEdição: Martin WalshDireção de arte: Marco Bittner RosserElenco: Natalie Portman, Hugo Weaving, Stephen Rea, Stephen Fry, John Hurt, Tim Pigott-Smith, Rupert Graves, Roger Allam, Ben Milles, Sinéad Cusack

terça-feira, maio 16, 2006

BOA NOITE E BOA SORTE, de George Clooney


George Clooney, sem precisar ofender diretamente George W. Bush e certos conglomerados da mídia norte-americana, bate com luva de pelica nas medidas políticas repressoras do atual presidente, resvalando por sua vez no tipo de jornalismo que vem sendo praticado desde o 11 de Setembro (para ficar no exemplo mais recente). Boa Noite e Boa Sorte, o mais recente filme de Clooney, começa pelo fim, com a premiação de Edward R. Murrow, apresentador do programa "See it Now", na CBS. A partir daí, praticamente toda a história se concentrará num bunker jornalístico, a sala das reuniões de pauta, onde a câmera flagra a tensão decorrente de um episódio no ano de 1953, quando um piloto é expulso da Força Aérea americana depois de seu pai ser acusado de supostamente estar lendo um jornal sérvio. Trata-se da caça aos comunistas, promovida pelo senador Joseph McCarthy (daí o termo macarthismo), então presidente do Comitê de Atividades Antiamericanas do Senado. As motivações prá lá de questionáveis do senador despertam o interesse do jornalista Edward Murrow e de sua equipe, que iniciam uma guerra de acusações contra as atitudes do senador depois que a CBS leva ao ar um programa inteiro de apontamentos dos abusos de Joseph McCarthy. Com a transmissão da réplica de McCarthy investindo contra Murrow (este dá uma tréplica brilhante ao senador), os ânimos se tornam mais inquietos a ponto de ser necessária uma manifestação discreta do presidente da CBS Frank Langella. E como infelizmente costuma acontecer na televisão popular, o "See it Now" é colocado em outro horário, fora da faixa de maior audiência, reservada agora para programas menos inteligentes e mais divertidos.


George Clooney está muito bem como o produtor Fred Friendly, mas sua maior atuação é mesmo como diretor já que realiza um filme muito bem resolvido em todos os aspectos. O status de ficção relatando o documental dá a Boa Noite e Boa Sorte abertura para trabalhar com uma fotografia em P&B que se confunde com as imagens reais captadas à época dos depoimentos de McCarthy (as imagens do senador são reais). O ambiente impregnado da fumaça dos cigarros, a sensação paradoxal de heroísmo e medo compartilhada entre os jornalistas, preocupados que estão com possíveis acusações de conspiração internacional, as piadas (um acusa o outro de amarelar e vem a resposta de que pior do que amarelar é ficar vermelho, em clara alusão ao comedores de criancinhas) e a negra cantando no bar, onde os jornalistas extravasam, uma música com o verso "a TV é que está com tudo" remetem a um imaginário conhecido como sendo a década de 50 nos EUA. Palmas para a atuação brilhante de David Strathairn, reforçada ainda mais pelos close-ups do personagem. Por fim, o grande trunfo de Clooney é não ceder à tentação de fazer um filme longo para englobar mais histórias e dar muitas explicações. O filme de Clooney é lacônico e contundente como a força do "Boa noite e boa sorte" pronunciado por Murrow ao fim de cada programa.



Boa Noite e Boa Sorte (Good night, and good luck), EUA, 2005, 93minDireção: George ClooneyRoteiro: George Clooney e Grant HeslovFotografia: Robert ElswitEdição: Stephen MirrioneDireção de arte: Christa MunroElenco: David Strathairn, Robert Downey Jr., Patricia Clarkson, Ray Wise, Frank Langella, Jeff Daniels, Peter Martin, George Clooney, Tate Donovan

sexta-feira, maio 05, 2006

Notas dos filmes lançados em março de 2006

A Liga dos Blogues Cinematográficos do qual este blog faz parte atribui notas aos filmes lançados a cada mês. Neste ranking, votam todos os membros da Liga. Reproduzo minhas notas para os filmes que assisti:

O plano perfeito, Spike Lee, EUA - nota: 7,5 (Falaram tanto do filme antes de eu assistir que fiquei com expectativas grandes demais. Resultado: não empolgou.)

Clube da Lua, Juan José Campanella, Argentina - nota: 8 (A crise financeira de um antigo clube prestes a ser vendido é o pano de fundo de um filme que fala sobre a resistência latino-americana para manter suas tradições e ter o direito de contar sua própria história.)

domingo, abril 30, 2006

A LULA E A BALEIA, de Noah Baumbach


Lembro de ter lido há alguns anos uma crônica dessas que saem aos domingos, da Heloísa Seixas, que estabelecia dois pólos numa relação amorosa: o grande e o pequeno. Esporadicamente o grande se apequenava e o pequeno engrandecia-se. Como já se pode imaginar o grande era o sujeito cheio de si, independente, que, por sua vez, era o combustível do pequeno, cuja flexibilidade costumava ser uma de suas maiores características.

Em A Lula e a Baleia, Bernard, professor universitário, escritor, intelectual, cercado por todos os lados de mimos e situações que o colocam num patamar superior, é o grande. Joan, a pequena, é a mulher de Bernard e tenta publicar seu livro. O casamento de 17 anos, construído a base de muitos filmes e livros, produziu um marido imbuído de razão e uma mulher declaradamente sentimental e emotiva pelos casos extra-conjugais que não esconde de Bernard. A ruptura na relação divide também as opiniões dos filhos: Walt, de 16 anos, apóia e é fã do pai, o sujeito que manda e sabe das coisas, enquanto Frank, de 12 anos, o mais desprotegido tende para o lado de Joan. Na difícil fase em que Frank entra na puberdade e Walt, na idade adulta, ambos descobrem o sexo a seu modo: Frank, masturbando-se e livrando-se das secreções pelos armários da escola e nos livros da biblioteca e Walt em frustradas tentativas de ter a primeira transa. Acontece que o pequeno (no sentido de ser o mais novo e no sentido figurado da crônica), ao livrar-se de seus anseios amoralmente como faz a mãe, tem muito mais êxito que Walt, este aconselhado pelo pai a aproveitar a idade, experimentar muitas mulheres e não se prender a nenhuma delas. O que, de certa forma, explica a falta de tato e a indiferença de Walt às suas parceiras nos sucessivos relacionamentos superficiais. Para Joan, assumir relações com outros homens é respeitar o desejo próprio. Para Walt trata-se de não criar vínculos emotivos. Curiosamente, Bernard dá este tipo de conselho ao filho, mas nunca traiu a mulher. As mudanças bruscas na família e, particularmente, a instabilidade no novo cotidiano de Bernard provocam alterações comportamentais em Frank e de Walt, cuja entrevista com um psicólogo (depois de o jovem ter ganho um concurso na escola com uma letra de música do Led Zeppelin e não sua, como ele fizera todos acreditarem) traz lembranças da infância onde sua mãe tivera participação bem maior. Entre elas, as visitas ao Museu Americano de História Natural onde se encontra desde aqueles tempos uma gigante reprodução de uma lula agarrada a uma baleia.

O roteiro fluente e inteligente, com cortes dinâmicos que não dão espaço para a análise da sucessão de acontecimentos, está recheado de diálogos sobre literatura. Discute-se se o Dickens do "Conto de duas cidades" é tão grande quanto o Dickens de "David Copperfield" ou de "Grandes esperanças". O livro mais comentado é "A metamorfose" e aí está a metáfora da mudança que ocorre nas posições de Walt ao longo do filme. As referências ao cinema são muitas: desde os cartazes de grandes clássicos do cinema cobrindo as paredes das casas, passando pela lembrança da atriz Mônica Vitti que uma namorada de Walt suscita em Bernard e culminando na bela cena em que Bernard, numa maca, prestes a ser colocado na ambulância depois de um quase atropelamento, passa o polegar nos lábios e chama Joan de vadia, reproduzindo Jean Paul Belmondo, em Acossado, de Godard. Bernard reconstrói aí a memória afetiva dos filmes que assistiu com Joan.

Walt volta ao museu para constatar que a baleia, grande no tamanho, por mais que esteja se atracando com a lula, parece mesmo estar sendo sustentada por esta última, que costuma aparecer bem menos nas cenas da vida.

p.s.: talvez seja pela forte influência animal do filme (a lula, a baleia, a barata de Kafka) que um gatinho amarelo adentrou a sala do Artplex minutos antes do início da sessão. Como costumam dizer: "Fofo!".


A Lula e a Baleia (The squid and the whale), EUA, 2005, 80min Direção e roteiro: Noah Baumbach Edição: Tim Streeto Fotografia: Robert D. Yeoman Elenco: Jeff Daniels, Laura Linney, Jesse Eisenberg, Owen Kline, Halley Feiffer, Anna Paquin, William Baldwin

sábado, abril 15, 2006

Antes da Nouvelle Vague, no MAM

A cinemateca exibiu por três fins de semana alguns dos clássicos do cinema francês de 'antes da nouvelle vague'. Tudo bem que a nouvelle vague sacudiu o cinema francês no fim dos anos 50, mas daí a colocar o nome da mostra de "Antes da nouvelle vague" parece tirar de foco diretores importantes do cinema clássico francês, como Jean Renoir e Robert Bresson.





Um dos destaques é As Damas do Bosque de Boulogne (1945, França), do Robert Bresson. Coincidentemente o filme foi exibido há exatamente um ano, quando o CCBB fazia a mostra de filmes de temática feminina para comemorar o dia internacional da mulher. É bem isso mesmo: o filme trata da vingança feminina. Para se vingar do amante Jean (Paul Bernard) que a abandonou, Hélène (Maria Casares) arma-lhe um casamento com Agnès (Elina Labourdette), uma jovem de bordel, com a cumplicidade da mãe desta. É interessante observar a narrativa clássica que veste Hélène, a traída, de negro em contraposição com a música doce, as expressões ingênuas de Agnès. Maria Casares dá corpo a uma das melhores vilãs do cinema, graças à sua interpretação.






Assisti também a Os Visitantes da Noite (1942, França), dirigido por Marcel Carné, com roteiro de Jacques Prévert. O filme ficou muito aquém da minha expectativa quando li o enredo. Dois irmãos, Gilles e Dominique, filhos do diabo, têm a missão de desfazer o casamento da filha do rei, prestes a acontecer, num reinado do período medieval. Esse interessante enredo se transforma num filme repetitivo, enfadonho, sem acontecimento de forma nem de conteúdo. Tudo vira uma boba história de amor água com açúcar. Chato toda vida. Bem diferente do belo O Boulevard do Crime.

sexta-feira, abril 14, 2006

AS QUATRO AVENTURAS DE REINETTE E MIRABELLE, de Eric Rohmer


"A Hora Azul": um pneu de bicicleta furado numa estrada bucólica, no interior da França, desencadeia a relação entre Reinette e Mirabelle. A primeira é a que oferece ajuda à segunda para colar o pneu. E essa cena me catapulta à infância, quando eu e meu pai colávamos o pneu furado das minhas bicicletas, que iam mudando de tamanho conforme eu ia crescendo. Essa atividade, quase uma terapia, ficou no meu passado e parece estar num passado inocente em As quatro aventuras de Reinette e Mirabelle. Reinette, a que tem uma vida simples (entre cabras, vacas e galinhas), é uma jovem que preserva o convívio humano junto à natureza (este que vai desvanecendo conforme os centros urbanos crescem). Sua vida contrasta em muito com a de Mirabelle, habitante da moderna Paris. No entanto, o convite de Reinette para um lanche revela que a diferença produz os mais interessantes diálogos. Ao observar as pinturas de Reinette, Mirabelle diz que aquilo que ela pinta é surrealismo. Reinette, entretanto, nem sabe o que isso significa. Reinette convida Mirabelle para presenciar a Hora Azul, o minuto de silêncio antes do amanhecer, o momento em que a natureza pára de respirar e os animais não se manifestam, o instante em que o mundo poderia se acabar. Na expectativa da Hora Azul, um carro passa ao longe atrapalhando o momento mágico de Reinette e Mirabelle. Diante da fúria de Reinette, Mirabelle diz que compreende a Hora Azul, apesar de não tê-la presenciado por completo. Reinette rebate e diz que a Hora Azul não é para ser compreendida, não é razão, mas o sentimento. A volta aos primórdios, o sentir sem ter que explicar racionalmente, o reconhecimento de que o homem fracassou em tentar traduzir em palavras tudo o que sente.

"O garçom": Reinette agora está em Paris, dividindo apartamento com Mirabelle. Supostamente, cedeu à razão e faz aulas numa escola de belas artes. No café, Reinette tenta pagar os 4,30 francos pela bebida, mas não tem trocados, só uma nota de 200 francos. Diz que espera pela amiga e que ela poderá pagar o café com trocados. O garçom antipático retruca: "é sempre o velho golpe da amiga". Mirabelle chega, mas não tem os trocados para o café. As duas fogem. Reinette volta depois para pagar os 4,30 francos que deve. Um outro garçom se admira: voltou só para pagar 4,30 francos!

"O mendigo, a cleptómana e a maníaca": os conflitos entre Reinette e Mirabelle ficam mais expostos neste episódio da crônica de Rohmer. As discussões entre dar ou não esmolas ao mendigo, como faz Reinette, entre ajudar ou não a uma mulher que rouba um supermercado, como fez Mirabelle ou pegar de volta o dinheiro de uma pedinte, que tem sua farsa descoberta por Reinette, na estação de trem.

"A venda do quadro": Depois de ser advertida por Mirabelle sobre suas excessivas explicações a respeito de muitas coisas, sobretudo de suas pinturas, Reinette faz a aposta de ficar calada no dia seguinte, mas recebe um telefonema e precisa levar seu quadro para ser submetido à avaliação de um especialista. Ainda assim, Reinette mantém de pé a aposta e leva consigo Mirabelle. A pintora, se passando por muda, tem dificuldades para lidar com o caricato especialista que, depois de tantos questionamentos sobre a pintura (se é Magritte - Reinette nem sabe quem é esse, se é naif) para tentar desvalorizá-la, acaba por comprá-la. Aqui, Eric Rohmer finaliza o filme da forma mais sutil possível. Se pensávamos que o diretor faz a apologia ao campo, fomos enganados. Rohmer, acima de tudo, trata da sensibilidade e de como esta pode conectar pessoas de diferentes realidades. Pois a pintura de Reinette, supostamente campestre e ingênua, recém-vendida ao especialista, causa impacto em duas mulheres super-modernas que acabam de chegar à galeria.

Acho que o filme de Rohmer é simples e isso, um ensaio sobre a sensibilidade.


As quatro aventuras de Reinette e Mirabelle (4 aventures de Reinette et Mirabelle) França, 1987, 99min Direção: Eric Rohmer Roteiro: Joelle Miquel e Eric Rohmer Fotografia: Sophie Maintigneux Montagem: Maria Luisa García Elenco: Joelle Miquel, Jéssica Forde, François-Marie Banier, Philippe Laudembach, Gerard Courant, Jean-Claude Brisseau

quarta-feira, abril 05, 2006

É Tudo Verdade 2006


Abaixo, breves comentários sobre os pouquíssimos filmes que pude assistir no festival:

O Homem-Urso

Antes de falar propriamente de O Homem-Urso, uma curiosidade: fui assistir ao filme no Odeon e, minutos antes da projeção, a fita arrebentou. Amir Labaki, organizador do É Tudo Verdade, subiu ao palco para dizer que pela segunda vez a cópia arrebentava antes de uma projeção no Rio (a primeira foi no ano passado, no Festival do Rio). Começaram então a exibir o dvd, mas agora os problemas eram digitais. Paciência tem limite. Saí e fui assistir no Memorial Getúlio Vargas, no último dia do festival.

O filme de Werner Herzog é uma reunião de fitas gravadas por um ecologista que por 13 anos esteve na convivência de ursos castanhos. Em 2003, entretanto, quando Timothy Treadwell já julgava-se um urso em pele humana tamanha era a intimidade (por parte dele) com os bichos, ele foi devorado por um velho urso faminto. De quebra, a namorada foi junto. Desse episódio não há imagens já que o ataque surpresa não possibilitou a abertura da lente da câmera. O que há como registro é o áudio, mas Herzog optou por não reproduzir para o espectador a tragédia.

Aos poucos, o filme vai mostrando a mente confusa de Treadwell. Posicionado de frente para as câmeras que levava consigo nas incursões pelas florestas, o ecologista e cineasta amador explicita uma paranóia em relação ao resultado de sua imagem, o que vai além do olhar do ecologista. Treadwell, como sabemos ao longo do documentário, tem um histórico de envolvimento com drogas e parece apresentar um comportamento quase esquizofrênico na lida com ursos, raposas, com as instituições protetoras dos animais e os guardas dos parques. Apesar de tudo, Herzog mantém até o fim uma abordagem extremamente respeitosa em relação ao personagem. Aponta, no máximo, uma "tendência para o caos", ao parafrasear Hobbes.

O Homem-Urso (Grizzly Man), EUA, 2005, 103min Direção: Werner Herzog


Operação Lua

Stanley Kubrick, para conseguir o efeito de luz de velas no belo Barry Lyndon, precisou de uma lente especialíssima, desenvolvida pela NASA. O diretor só conseguiu a lente porque havia um conchavo entre ele e a agência espacial. É que no passado, mais especificamente em 1968, Kubrick, cedendo aos pedidos do governo americano (este, desejoso de se equiparar e ultrapassar os avanços tecnológicos da União Soviética), aceitou criar em estúdio a ida do Homem à Lua. Na época, o diretor filmava 2001, Uma Odisséia no Espaço e mostrou, portanto, habilidade técnica o suficiente para enganar um planeta inteiro (claro, há exceções: você com certeza conhece algum avô que não acredita nessa balela de um pequeno passo para o homem e um grande salto para a humanidade). Além de contra-argumentos da Física (gravidade etc etc etc) para desmascarar as imagens do homem na Lua, há, inclusive, o depoimento do todo-poderoso secretário de Defesa americano Donald Rumsfeld. Ai você pensa, se esse carinha, que como sabemos é um grande mentiroso, deu um depoimento para dizer que o homem não pisou no satélite natural da Terra, então só pode ser brincadeira. Mas aí o filme acaba e a gente se pergunta: será que pisou mesmo? É tudo mentira?

Operação Lua (Operátion Lune), França, 2002, 52min Direção: Willem Karel


Person

Com a presença da diretora do filme e VJ da MTV Marina Person, assisti, no Odeon, a um documentário de família, mas nem por isso menos belo e competente. Marina Person resgata as lembranças do pai, o cineasta Luis Sérgio Person, através dos depoimentos de sua irmã Domingas e da mãe, a também cineasta Regina Jehá. No lado afetivo-profissional, Marina conversa com personalidades das artes, que conviveram com Person, como, por exemplo, Carlos Reichenbach, Zé do Caixão, Antunes Filho, Ney Latorraca, Eva Wilma, Jean-Claude Bernadet e Jorge Ben Jor, cujas músicas trilham o documentário. Com bastante eficiência, a diretora faz de forma quase transparente a ponte entre os depoimentos sobre o Person cineasta e o Person pai, o que resulta num filme que flui sem fissura alguma na narrativa.

O tom assumidamente passional do filme revela ao espectador as intenções da diretora: fazer uma homenagem afetiva ao pai, mas também reaver o valor da filmografia de Person, que ambientou a maioria de seus filmes em São Paulo. Grande crítico e contemporâneo do Cinema Novo, Person teve uma carreira fora dos holofotes, apesar do sucesso de crítica de seus filmes. Em Person, a partir das imagens de São Paulo S/A, a personalidade existencialista do personagem, interpretado por Walmor Chagas, é entrelaçada e analisada como alter-ego do cineasta. Imagens de arquivo de uma entrevista que o cineasta concedeu à TV Cultura têm um poder tão forte no filme que parecem recuperar a alma de Person.

É entre as fotos de Luiz Sérgio Person, o rio e as árvores do sítio da família que Marina conduz a mãe e a irmã às reminiscências, incluindo aí a própria diretora cuja aparição constante na tela é antes de tudo um mergulho apaixonado e profundo em Person. Na cena final, Marina e Domingas caminham sobre os trilhos, atravessando um túnel e encontrando a luz e o verde da floresta no outro lado. Marina foi à floresta encontrar o pai.

Person, Brasil, 2006, 73min Direção: Marina Person


Leituras

Da produção de imagens: Consuelo Lins, professora universitária, cineasta e assistente de direção de Eduardo Coutinho, em viagens por trens e metrôs de Paris, filma com uma câmera de celular a introspecção de passageiros em suas leituras. Fragmentos de imagens das leituras, imagens obtidas por um simples telefone celular, pessoas em trânsito. Fugacidade.

Da possibilidade de leituras: os franceses lêem do "Código Da Vinci" ao mais erudito filósofo. Tudo isso cabe num metrô. Na França, a leitura é um hábito tão arraigado na população que chega a ser quase involuntário. A maioria dos franceses sabe limitar o tempo que passam de frente para a TV. No Brasil, a fraca disseminação do livro (seja pelo preço do livro ou pela falta de hábito do brasileiro em abrir um) não é somente ruim para editoras e livrarias, mas acarreta problemas na leitura do discurso por trás da imagem no cinema e na televisão. Ler livros é pré-condição para ler o mundo, no mais amplo sentido.

Leituras (Lectures), França, 2005, 6min Direção: Consuelo Lins


Notas: na vinheta que antecede os filmes do É Tudo Verdade 2006 a voz off diz que estamos diante de uma seleção dos melhores documentários do mundo. Quem viu I'm Charlie Chaplin (dir: Jay Rosenblatt, EUA, 2005, 8min) sabe que isso não é verdade. Um vídeo caseiro, mal produzido, de uma menininha que se veste de Charlie Chaplin e fica gritando "travessuras ou gostosuras" o tempo todo não pode ter passado por uma seleção tão criteriosa. Nessas horas eu penso na quantidade de bons filmes que ficaram de fora.

quarta-feira, março 22, 2006

LAST DAYS, de Gus Van Sant


Festival do Rio 2005
Para assistir ao filme do Gus Van Sant, precisei acordar cedo: às 12h40, estava eu plantado no início de fila que já se formava na bilheteria do Odeon. Tempo nublado e a eterna corrente de ventos frios que sempre há - chova ou faça sol - naquele corredor entre o Passeio Público e o cine Palácio. Pensando já em como poderia ser a abordagem de Gus Van Sant a respeito da inspiração livre na trágica morte de Kurt Cobain, olhava para os tantos pés de adolescentes na fila, que calçavam all star não-importa-a-cor. Será que o all star significa um público alternativo ou serão estes fãs enlouquecidos do finado Cobain que vieram achincalhar Van Sant?? Às 14h, finalmente o ingresso. Fade... passagem do tempo... muitas horas depois... Às 21h30, eu chegava a uma Cinelândia fria, chuvosa e lotada de guarda-chuvas. Ainda havia pessoas na fila comentando a presença do diretor sem saber que ele dera um bolo no festival. Entramos eu, amigos e conhecidos que lá encontrei. A proposta de um amigo foi de subirmos para apreciar o filme por um "outro ponto de vista". Literalmente. Apesar de freqüentador assíduo da sala, nunca havia estado lá próximo ao céu do Odeon, próximo ao admirável lustre. O medo era de não conseguir acompanhar bem as legendas eletrônicas, que ficam abaixo da tela. Mas deu. Se não desse, não faria tanta diferença. Last Days tem poucos diálogos. Os existentes querem dizer algo, mas esse algo, quase sempre, é o excesso que talvez tenha motivado o 'exílio' de Blake, interpretado por Michael Pitt. A primeira imagem de Blake é estranha: ele caminha, completamente sujo, com o corpo encurvado, na floresta, murmurando palavras ou melodias quase inaudíveis. A câmera segue Blake num plano-seqüência até sua chegada a um casarão. Partindo do princípio de que todos já sabemos o trágico final de Blake / Cobain, o diretor enfatiza a forma da narrativa em detrimento de suspenses e surpresas. Não há nenhum grande acontecimento, mas minúcias e fragmentos de uma história quase onírica e impressionista, tanto nas imagens quanto na velocidade do filme. Como em Elefante (segundo filme de uma trilogia iniciada por Gerry), as histórias são contadas mais de uma vez, por ângulos diferentes, insinuando que a verdade está no olhar de cada um e não no fato. Van Sant concebe idéias pela forma como filma: há, por exemplo, em determinada cena, uma câmera estática, sem cortes e, diante dela, as coisas, importantes ou não, acontecem. Blake conversa ao fundo ao tempo em que outras pessoas cruzam o primeiro plano. A condição de rock star não alivia as dores de Blake, ele não é o centro do mundo. O sarcasmo maior (humor negro, diria) está em deixar agonizar um Blake completamente deprimido, caído no chão, enquanto na TV vemos o clip inteiro do grupo Boys II Men miando uma tristeza falsa, plástica, enfim, um jeito pop-MTV de ser. Gus Van Sant não explica os motivos de Blake. Quem fará isso é a mídia, que tem seu papel secundarizado em Last Days. Diante da televisão que noticia a morte do ídolo, os amigos, em estado completamente letárgico (uma constante de todos os personagens durante todo o filme) discutem uma forma de sair da casa sem terem seus rostos dissecados pelos flashes fotográficos. A partir das próximas horas, estará criado um novo mito. Mas aí não é mais com Gus Van Sant. Corta.


Last Days (sem lançamento no Brasil), EUA, 2005, 97min Direção, roteiro e montagem: Gus Van Sant Fotografia: Harris Savides Música original: Rodrigo Lopresti Direção de arte: Tim Grimes Elenco: Michael Pitt, Lukas Haas, Asia Argento, Scott Patrick Green, Nicole Vicius

terça-feira, fevereiro 28, 2006

CAPOTE, de Bennett Miller


Em 1959, Truman Capote lê no New York Times a notícia de um crime em que quatro pessoas da mesma família são brutalmente assassinadas. O jornalista da revista New Yorker segue para o Kansas atrás de mais detalhes. No filme de Bennett Miller, por meio de uma narrativa com trilha sonora impressionista, Capote sorrateiramente entra na vida dos dois assassinos, fixando-se depois na história de um deles: Perry Smith. Capote liga para o jornal e diz que nao tem uma matéria, mas um livro que vai mudar a vida das pessoas que o lerem. Sim, Truman Capote é pretensioso, esnobe e sarcástico. Ele escreve um livro. Ele tem um fotógrafo de moda para registrar a imagem dos assassinos em seu livro. Ele anuncia o maior romance baseado em fatos reais da década. Entretanto, Capote, que prejulgara toda a história dos assassinos a partir do nome do livro, "A sangue frio", tem um baque quando se dá conta de seu envolvimento com Perry. Nas palavras de Capote, o assassino seria alguém que cresceu na mesma casa que a sua, mas que saiu pela porta dos fundos, enquanto o escritor se deu bem na vida, saindo pela frente. Truman Capote identifica-se com a rejeição de Perry porque ambos tiveram uma infância marginalizada. De índole falseadora, Capote vai ao limite da "desonestidade" (em nome da profissão, mas também por seu espírito de auto-engrandecimento) para conseguir arrancar de Perry informações sobre a noite do crime, mas acaba por derramar lágrimas sinceras pelo destino trágico do réu. É, todavia, muito mais latente a personalidade racional e fria de Capote (um detetive chega a questionar se o título "A sangue frio" é uma referência aos assassinos ou à forma como o escritor lida com Perry). Para Capote, Perry é uma mina de ouro. Nas duas vezes em que os advogados dos assassinos conseguem adiamento da pena, Capote vai da aflição à raiva, temendo que a demora de um fim definitivo no caso atrase o lançamento do livro. O reconhecimento por Capote de semelhanças entre ele e Perry o fascinam de tal modo que pode-se dizer que "A sangue frio" é uma biografia mascarada do próprio escritor. O saldo alcançado pelo filme é não dissociar os defeitos de um "personagem real", ainda que ele seja considerado um dos maiores escritores da literatura americana e um dos precursores do jornalismo romanceado, o new journalism (estilo que ecoou inclusive na imprensa brasileira e influencia até hoje). Em relação às atuações, não há nada que consiga tirar o brilho do camaleônico Philip Seymour Hoffman como Capote (não é de agora que o trabalho do ator é elogiado com unanimidade). Já é previsível a frase "...and the Oscar goes to Philip Seymour Hoffman". Mas para Capote, o filme, falta um pouco mais de ousadia e ritmo, falta alguma transgressão na forma de narrar, algo que se equipare à personalidade de Truman Capote e mesmo à atuação de Philip Seymour Hoffman.

Capote (Capote), EUA, 2005, 115min
Direção: Bennett Miller
Roteiro: Dan Futterman
Fotografia: Adam Kimmel
Edição: Chistopher Tellefsen
Elenco: Philip Seymour Hoffman, Catherine Keener, Clifton Collins Jr., Chris Cooper, Bruce Greenwood, Bob Balaban, Amy Ryan, Mark Pellegrino

sábado, fevereiro 25, 2006

O SEGREDO DE BROKEBACK MOUNTAIN, de ANG LEE e O BANQUETE DE CASAMENTO, de ANG LEE

Um horizonte sem montanhas, visto de dentro do trailler do protagonista Ennis, marca o fim de Brokeback Mountain. Ao lado desse horizonte que se vê pela janela, a câmera mostra paralelamente a fotografia da montanha Brokeback colada na porta do guarda-roupa de Ennis. É como se Brokeback não mais existisse. A felicidade no novo filme de Ang Lee passou quase desapercebida para Jack e Ennis. Mais pelo sentimento de culpa de Ennis, um cowboy em plena década de 60, que acredita estarem ambos "no lugar errado e no momento errado". Sinal dos tempos. Se levássemos em conta a tolerância humana para lidar com o amor que não ousa dizer o seu nome, a filmografia de Ang Lee seria cronologicamente invertida. Em O Banquete de Casamento, de 1993, o chinês naturalizado americano Wai Tung vive em Nova York com o namorado Simon. Quando menos se espera, os pais de Wai Tung anunciam a viagem para os EUA para casarem o filho. Wai Tung arruma um casamento de fachada com sua inquilina para agradar aos pais. Muitos contratempos acontecem até o final do filme, mas tudo termina bem entre Wai Tung e Simon. Há uma grande diferença entre Nova York dos anos 90 e Wyoming dos anos 60. Por essa razão os personagens dos dois filmes lidam com seus desejos de forma repressora ou libertária. Por esse mesmo motivo, é superficial argumentar, como tem feito parte da crítica, que Ang Lee produz cowboys estereotipados. Além de o diretor já ter mostrado que sabe filmar bem o assunto, vide o filme de 1993, ele capta com fidelidade a atmosfera daquele período americano, que perdura ainda hoje. Para finalizar as comparações entre os filmes: Em Brokeback Mountain fica evidente o olhar de cumplicidade entre Ennis e a mãe de Jack, diante do olhar desconfiado e repressor do pai. Em O Banquete de Casamento, quando a mãe de Wai Tung descobre a farsa do casamento, ela tenta esconder do marido, temendo que ele tenha um ataque cardíaco com a notícia de que o filho é gay, mas quem se mostra mais tolerante com a situação é o próprio pai que, além de manter o segredo com Simon, o namorado de Wai Tung, dá ao genro um valor em dinheiro que equivale à uma espécie de dote, um símbolo do aval que Jack e Ennis não obtiveram em suas vidas.

O segredo de Brokeback Mountain (Brokeback Mountain) EUA, 2005, 134min
Direção: Ang Lee
Roteiro: Larry McMurtry e Diana Ossana, baseado em estória de Annie Proulx
Música: Gustavo Santaolalla
Fotografia: Rodrigo Prieto
Produção: Diana Ossana e James Schamus
Edição: Geraldine Peroni e Dylan Tichenor
Elenco:Jake Gyllenhaal, Heath Ledger, Michelle Williams, Anne Hathaway, Randy Quaid

O banquete de casamento (Hsi Yen / The wedding banquet) Taiwan / EUA, 1993, 102min
Direção: Ang Lee
Roteiro: Ang Lee, Ted Hope, James Schamus
Fotografia: Jong Lin
Montagem: Tim Squyres
Produção: Ang Lee, Ted Hope, James Schamus
Elenco: Winston Chao, May Chin, Mitchell Lichtenstein, Ah Lei Gua, Sihung Lung

terça-feira, fevereiro 14, 2006

FELIZES JUNTOS, de WONG KAR-WAI




O efeito 2046 possibilitou uma retrospectiva no Odeon de quatro filmes do diretor chinês radicado em Hong Kong Wong Kar-Wai. Os filmes ("Anjos caídos", "Amores expressos", "Felizes juntos" e "Amor à flor da pele") de Kar Wai tornaram-se conhecidos graças ao grande sucesso deste último, que teve sua estréia no Brasil em 2001. Eu, antes de Amor à flor da pele, conhecera no início de 2005, dentro da mostra de filmes road movie, promovida pelo CCBB, o filme Felizes juntos. Daquela sessão, lembro do meu fascínio com a explosão das cores e do tango que davam o tom à história de paixão dilacerante entre dois jovens que deixaram Hong Kong para tentar a vida em Buenos Aires. Da sessão mais recente que assisti, tudo isso se renovou, mas assistindo também à Amor à flor da pele e 2046 (os três filmes em menos de duas semanas), ficaram na minha cabeça muitas perguntas. Dentre tantas, pergunto-me retoricamente: que diabos tem a ver a fumaça do cigarro com as histórias de Kar-Wai? Nos três filmes, uma ou várias tomadas de uma fumaça que sobe em câmera lenta e some, tão fugaz quanto o pensamento do dono do cigarro. E o que mais tem os objetos em cena nos filmes de Kar-Wai? Em Felizes juntos, Fai e Po-Wing materializam num abajour barato que reproduz quedas d'água o sonho em chegar às Cataratas do Iguaçu. Entretanto, ambos precisam trabalhar duro, seja fotografando turistas na porta de um bar, seja lavando pratos num restaurante ou até mesmo vendendo o corpo. As cenas externas, de noites frias e ao som do tango de Astor Piazolla diante do Bar Sur contrastam com as cores fortes e o clima sufocado no quarto do Cosmos Hotel, onde as brigas de Fai e Po-Wing têm sempre como fundo sonoro e cenográfico a TV ligada num programa popular de auditório ou o rádio sintonizado numa estação de músicas bregas. O tango de Piazolla, afinal, não lhes fala à alma, ele fala de Buenos Aires, e Fai e Po-Wing carecem de um lugar que não os deixe à margem. Por isso, querem voltar para a Hong Kong, ainda que a colônia até então britânica esteja sob ameaça da censura comunista agora que está sendo devolvida à China. A atração entre os personagens é tão grande que nem mesmo a clássica piada com o "sair para comprar cigarros" e não voltar nunca mais não funciona. Po-Wing sai para comprar cigarros (aos montes) e volta. Volta para a luta de corpos que alterna violência e agressão com paixão e carícias. As cenas iniciais em preto e branco só terminam quando Po-Wing e Fai se entendem, apesar das desavenças no relacionamento ao longo de todo o filme. Com a inevitável separação, menos pela instabilidade da relação do que pelos anseios de Fai em voltar para casa, percebe-se que o Felizes juntos foi tão forte e explosivo quanto transitório e etéreo.

Felizes juntos (Cheun Gwong tsa sit), Hong Kong, 1997, 98 min
Direção: Wong Kar-Wai
Fotografia: Chistopher Doyle (também de "Eros", "2046", "Amor à flor da pele", "Anjos caídos", "Amores expressos")
Elenco: Tony Leung Chiu-Wai, Leslie Cheung, Chen Chang, Gregory Dayton

sexta-feira, janeiro 06, 2006

TRINTA ANOS ESTA NOITE, de LOUIS MALLE


A chuva constante, a queda de temperatura e o céu cinza chumbo retratados na melancólica Paris de Alain Leroy, em Trinta anos esta noite, eram parecidos com este atípico dia de janeiro, na cidade. Tanto que quase desisti de ir ao Odeon para ver mais um filme da mostra do diretor francês Louis Malle. Para a minha surpresa, o cinema estava cheio. Talvez pelo mês de férias, talvez, pelo frio mesmo. Pois que o tempo se adequou ao clima (do filme). Nada mais triste que a constatação da passagem da vida. Nada mais desolador que voltar ao lugar onde, no passado, davam-se festas. Onde estão os amigos? Por medo do que vai encontrar, Alain vai adiando sua saída da clínica onde se internou para a cura do alcoolismo, este único resquício dos velhos tempos. Alain agora sente um grande vazio, que ele chama de angústia permanente. Não há mais o que viver, "a vida não passa rápido o bastante". A cena inicial é composta somente por closes de um encontro íntimo entre Alain e a amiga Lydia, entre cigarros e a música delicada de Erik Satie, que trilha todo o filme. A amante o estimula a deixar a clínica para rever os amigos que deixou há três anos em Paris. O plano dele, no entanto, é não só rever, mas despedir-se de todos. Nunca teve um trabalho e sobrevive às custas da mulher, que está em Nova York e não responde mais às suas cartas. Alain instala-se num hotel em Paris e começa a visitar os amigos cuja juventude foi trocada por livros, filhos e trabalho. Para ele, tudo é só decepção. É difícil voltar e encontrar tudo diferente, ao passo que ele mudou, não é mais o mesmo brincalhão, não bebe mais como antes, mas gostaria de encontrar as coisas como deixou quando abandonou os amigos. Caminha pelas ruas, senta-se num bar e deita o olhar aos jovens que passam, sem pressa e com displicência, como se o tempo nunca lhes fosse alcançar para roer-lhes os tecidos. Alain sente inveja, não quer a velhice, a fraqueza, o perecer. Agora é frágil e ainda há pouco quase foi atropelado por causa de um único cálice de bebida que tomou. Falta-lhe o amor próprio e a vontade de viver, de superar os problemas. Por fim, eis que o homem vai para o quarto de hotel e dá um tiro no peito para acabar com a maldita angústia. Na carta de despedida diz estar se matando "porque vocês não me amaram e eu não vos amei. Estou me matando para deixar em vocês uma marca indelével (...)". Daí penso no poder que o cinema tem em convergir diversas artes - música, literatura, pintura etc - e nas coincidências da vida porque bem antes da carta de Alain uma música que eu tenho ouvido mentalmente nas últimas semanas percorria o meu pensamento diante daquele filme: "the greatest thing you'll ever learn is just to love and be loved in return." A coisa mais importante que você vai aprender é amar e ser amado de volta. (Nature boy - Eden Ahbez).

Trinta anos esta noite (Le feu follet) França, 1963, 110 min
Direção: Louis Malle
Roteiro: Louis Malle e Pierre Drieu La Rochelle, baseado no romance homônimo deste
Fotografia: Ghislain Cloquet
Edição: Suzanne Baron
Elenco: Maurice Ronet, Lea Skerla, Yvonne Clech, Hubert Deschamps