"A Hora Azul": um pneu de bicicleta furado numa estrada bucólica, no interior da França, desencadeia a relação entre Reinette e Mirabelle. A primeira é a que oferece ajuda à segunda para colar o pneu. E essa cena me catapulta à infância, quando eu e meu pai colávamos o pneu furado das minhas bicicletas, que iam mudando de tamanho conforme eu ia crescendo. Essa atividade, quase uma terapia, ficou no meu passado e parece estar num passado inocente em As quatro aventuras de Reinette e Mirabelle. Reinette, a que tem uma vida simples (entre cabras, vacas e galinhas), é uma jovem que preserva o convívio humano junto à natureza (este que vai desvanecendo conforme os centros urbanos crescem). Sua vida contrasta em muito com a de Mirabelle, habitante da moderna Paris. No entanto, o convite de Reinette para um lanche revela que a diferença produz os mais interessantes diálogos. Ao observar as pinturas de Reinette, Mirabelle diz que aquilo que ela pinta é surrealismo. Reinette, entretanto, nem sabe o que isso significa. Reinette convida Mirabelle para presenciar a Hora Azul, o minuto de silêncio antes do amanhecer, o momento em que a natureza pára de respirar e os animais não se manifestam, o instante em que o mundo poderia se acabar. Na expectativa da Hora Azul, um carro passa ao longe atrapalhando o momento mágico de Reinette e Mirabelle. Diante da fúria de Reinette, Mirabelle diz que compreende a Hora Azul, apesar de não tê-la presenciado por completo. Reinette rebate e diz que a Hora Azul não é para ser compreendida, não é razão, mas o sentimento. A volta aos primórdios, o sentir sem ter que explicar racionalmente, o reconhecimento de que o homem fracassou em tentar traduzir em palavras tudo o que sente.
"O garçom": Reinette agora está em Paris, dividindo apartamento com Mirabelle. Supostamente, cedeu à razão e faz aulas numa escola de belas artes. No café, Reinette tenta pagar os 4,30 francos pela bebida, mas não tem trocados, só uma nota de 200 francos. Diz que espera pela amiga e que ela poderá pagar o café com trocados. O garçom antipático retruca: "é sempre o velho golpe da amiga". Mirabelle chega, mas não tem os trocados para o café. As duas fogem. Reinette volta depois para pagar os 4,30 francos que deve. Um outro garçom se admira: voltou só para pagar 4,30 francos!
"O mendigo, a cleptómana e a maníaca": os conflitos entre Reinette e Mirabelle ficam mais expostos neste episódio da crônica de Rohmer. As discussões entre dar ou não esmolas ao mendigo, como faz Reinette, entre ajudar ou não a uma mulher que rouba um supermercado, como fez Mirabelle ou pegar de volta o dinheiro de uma pedinte, que tem sua farsa descoberta por Reinette, na estação de trem.
"A venda do quadro": Depois de ser advertida por Mirabelle sobre suas excessivas explicações a respeito de muitas coisas, sobretudo de suas pinturas, Reinette faz a aposta de ficar calada no dia seguinte, mas recebe um telefonema e precisa levar seu quadro para ser submetido à avaliação de um especialista. Ainda assim, Reinette mantém de pé a aposta e leva consigo Mirabelle. A pintora, se passando por muda, tem dificuldades para lidar com o caricato especialista que, depois de tantos questionamentos sobre a pintura (se é Magritte - Reinette nem sabe quem é esse, se é naif) para tentar desvalorizá-la, acaba por comprá-la. Aqui, Eric Rohmer finaliza o filme da forma mais sutil possível. Se pensávamos que o diretor faz a apologia ao campo, fomos enganados. Rohmer, acima de tudo, trata da sensibilidade e de como esta pode conectar pessoas de diferentes realidades. Pois a pintura de Reinette, supostamente campestre e ingênua, recém-vendida ao especialista, causa impacto em duas mulheres super-modernas que acabam de chegar à galeria.
Acho que o filme de Rohmer é simples e isso, um ensaio sobre a sensibilidade.
As quatro aventuras de Reinette e Mirabelle (4 aventures de Reinette et Mirabelle) França, 1987, 99min Direção: Eric Rohmer Roteiro: Joelle Miquel e Eric Rohmer Fotografia: Sophie Maintigneux Montagem: Maria Luisa García Elenco: Joelle Miquel, Jéssica Forde, François-Marie Banier, Philippe Laudembach, Gerard Courant, Jean-Claude Brisseau
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