terça-feira, fevereiro 28, 2006

CAPOTE, de Bennett Miller


Em 1959, Truman Capote lê no New York Times a notícia de um crime em que quatro pessoas da mesma família são brutalmente assassinadas. O jornalista da revista New Yorker segue para o Kansas atrás de mais detalhes. No filme de Bennett Miller, por meio de uma narrativa com trilha sonora impressionista, Capote sorrateiramente entra na vida dos dois assassinos, fixando-se depois na história de um deles: Perry Smith. Capote liga para o jornal e diz que nao tem uma matéria, mas um livro que vai mudar a vida das pessoas que o lerem. Sim, Truman Capote é pretensioso, esnobe e sarcástico. Ele escreve um livro. Ele tem um fotógrafo de moda para registrar a imagem dos assassinos em seu livro. Ele anuncia o maior romance baseado em fatos reais da década. Entretanto, Capote, que prejulgara toda a história dos assassinos a partir do nome do livro, "A sangue frio", tem um baque quando se dá conta de seu envolvimento com Perry. Nas palavras de Capote, o assassino seria alguém que cresceu na mesma casa que a sua, mas que saiu pela porta dos fundos, enquanto o escritor se deu bem na vida, saindo pela frente. Truman Capote identifica-se com a rejeição de Perry porque ambos tiveram uma infância marginalizada. De índole falseadora, Capote vai ao limite da "desonestidade" (em nome da profissão, mas também por seu espírito de auto-engrandecimento) para conseguir arrancar de Perry informações sobre a noite do crime, mas acaba por derramar lágrimas sinceras pelo destino trágico do réu. É, todavia, muito mais latente a personalidade racional e fria de Capote (um detetive chega a questionar se o título "A sangue frio" é uma referência aos assassinos ou à forma como o escritor lida com Perry). Para Capote, Perry é uma mina de ouro. Nas duas vezes em que os advogados dos assassinos conseguem adiamento da pena, Capote vai da aflição à raiva, temendo que a demora de um fim definitivo no caso atrase o lançamento do livro. O reconhecimento por Capote de semelhanças entre ele e Perry o fascinam de tal modo que pode-se dizer que "A sangue frio" é uma biografia mascarada do próprio escritor. O saldo alcançado pelo filme é não dissociar os defeitos de um "personagem real", ainda que ele seja considerado um dos maiores escritores da literatura americana e um dos precursores do jornalismo romanceado, o new journalism (estilo que ecoou inclusive na imprensa brasileira e influencia até hoje). Em relação às atuações, não há nada que consiga tirar o brilho do camaleônico Philip Seymour Hoffman como Capote (não é de agora que o trabalho do ator é elogiado com unanimidade). Já é previsível a frase "...and the Oscar goes to Philip Seymour Hoffman". Mas para Capote, o filme, falta um pouco mais de ousadia e ritmo, falta alguma transgressão na forma de narrar, algo que se equipare à personalidade de Truman Capote e mesmo à atuação de Philip Seymour Hoffman.

Capote (Capote), EUA, 2005, 115min
Direção: Bennett Miller
Roteiro: Dan Futterman
Fotografia: Adam Kimmel
Edição: Chistopher Tellefsen
Elenco: Philip Seymour Hoffman, Catherine Keener, Clifton Collins Jr., Chris Cooper, Bruce Greenwood, Bob Balaban, Amy Ryan, Mark Pellegrino

sábado, fevereiro 25, 2006

O SEGREDO DE BROKEBACK MOUNTAIN, de ANG LEE e O BANQUETE DE CASAMENTO, de ANG LEE

Um horizonte sem montanhas, visto de dentro do trailler do protagonista Ennis, marca o fim de Brokeback Mountain. Ao lado desse horizonte que se vê pela janela, a câmera mostra paralelamente a fotografia da montanha Brokeback colada na porta do guarda-roupa de Ennis. É como se Brokeback não mais existisse. A felicidade no novo filme de Ang Lee passou quase desapercebida para Jack e Ennis. Mais pelo sentimento de culpa de Ennis, um cowboy em plena década de 60, que acredita estarem ambos "no lugar errado e no momento errado". Sinal dos tempos. Se levássemos em conta a tolerância humana para lidar com o amor que não ousa dizer o seu nome, a filmografia de Ang Lee seria cronologicamente invertida. Em O Banquete de Casamento, de 1993, o chinês naturalizado americano Wai Tung vive em Nova York com o namorado Simon. Quando menos se espera, os pais de Wai Tung anunciam a viagem para os EUA para casarem o filho. Wai Tung arruma um casamento de fachada com sua inquilina para agradar aos pais. Muitos contratempos acontecem até o final do filme, mas tudo termina bem entre Wai Tung e Simon. Há uma grande diferença entre Nova York dos anos 90 e Wyoming dos anos 60. Por essa razão os personagens dos dois filmes lidam com seus desejos de forma repressora ou libertária. Por esse mesmo motivo, é superficial argumentar, como tem feito parte da crítica, que Ang Lee produz cowboys estereotipados. Além de o diretor já ter mostrado que sabe filmar bem o assunto, vide o filme de 1993, ele capta com fidelidade a atmosfera daquele período americano, que perdura ainda hoje. Para finalizar as comparações entre os filmes: Em Brokeback Mountain fica evidente o olhar de cumplicidade entre Ennis e a mãe de Jack, diante do olhar desconfiado e repressor do pai. Em O Banquete de Casamento, quando a mãe de Wai Tung descobre a farsa do casamento, ela tenta esconder do marido, temendo que ele tenha um ataque cardíaco com a notícia de que o filho é gay, mas quem se mostra mais tolerante com a situação é o próprio pai que, além de manter o segredo com Simon, o namorado de Wai Tung, dá ao genro um valor em dinheiro que equivale à uma espécie de dote, um símbolo do aval que Jack e Ennis não obtiveram em suas vidas.

O segredo de Brokeback Mountain (Brokeback Mountain) EUA, 2005, 134min
Direção: Ang Lee
Roteiro: Larry McMurtry e Diana Ossana, baseado em estória de Annie Proulx
Música: Gustavo Santaolalla
Fotografia: Rodrigo Prieto
Produção: Diana Ossana e James Schamus
Edição: Geraldine Peroni e Dylan Tichenor
Elenco:Jake Gyllenhaal, Heath Ledger, Michelle Williams, Anne Hathaway, Randy Quaid

O banquete de casamento (Hsi Yen / The wedding banquet) Taiwan / EUA, 1993, 102min
Direção: Ang Lee
Roteiro: Ang Lee, Ted Hope, James Schamus
Fotografia: Jong Lin
Montagem: Tim Squyres
Produção: Ang Lee, Ted Hope, James Schamus
Elenco: Winston Chao, May Chin, Mitchell Lichtenstein, Ah Lei Gua, Sihung Lung

terça-feira, fevereiro 14, 2006

FELIZES JUNTOS, de WONG KAR-WAI




O efeito 2046 possibilitou uma retrospectiva no Odeon de quatro filmes do diretor chinês radicado em Hong Kong Wong Kar-Wai. Os filmes ("Anjos caídos", "Amores expressos", "Felizes juntos" e "Amor à flor da pele") de Kar Wai tornaram-se conhecidos graças ao grande sucesso deste último, que teve sua estréia no Brasil em 2001. Eu, antes de Amor à flor da pele, conhecera no início de 2005, dentro da mostra de filmes road movie, promovida pelo CCBB, o filme Felizes juntos. Daquela sessão, lembro do meu fascínio com a explosão das cores e do tango que davam o tom à história de paixão dilacerante entre dois jovens que deixaram Hong Kong para tentar a vida em Buenos Aires. Da sessão mais recente que assisti, tudo isso se renovou, mas assistindo também à Amor à flor da pele e 2046 (os três filmes em menos de duas semanas), ficaram na minha cabeça muitas perguntas. Dentre tantas, pergunto-me retoricamente: que diabos tem a ver a fumaça do cigarro com as histórias de Kar-Wai? Nos três filmes, uma ou várias tomadas de uma fumaça que sobe em câmera lenta e some, tão fugaz quanto o pensamento do dono do cigarro. E o que mais tem os objetos em cena nos filmes de Kar-Wai? Em Felizes juntos, Fai e Po-Wing materializam num abajour barato que reproduz quedas d'água o sonho em chegar às Cataratas do Iguaçu. Entretanto, ambos precisam trabalhar duro, seja fotografando turistas na porta de um bar, seja lavando pratos num restaurante ou até mesmo vendendo o corpo. As cenas externas, de noites frias e ao som do tango de Astor Piazolla diante do Bar Sur contrastam com as cores fortes e o clima sufocado no quarto do Cosmos Hotel, onde as brigas de Fai e Po-Wing têm sempre como fundo sonoro e cenográfico a TV ligada num programa popular de auditório ou o rádio sintonizado numa estação de músicas bregas. O tango de Piazolla, afinal, não lhes fala à alma, ele fala de Buenos Aires, e Fai e Po-Wing carecem de um lugar que não os deixe à margem. Por isso, querem voltar para a Hong Kong, ainda que a colônia até então britânica esteja sob ameaça da censura comunista agora que está sendo devolvida à China. A atração entre os personagens é tão grande que nem mesmo a clássica piada com o "sair para comprar cigarros" e não voltar nunca mais não funciona. Po-Wing sai para comprar cigarros (aos montes) e volta. Volta para a luta de corpos que alterna violência e agressão com paixão e carícias. As cenas iniciais em preto e branco só terminam quando Po-Wing e Fai se entendem, apesar das desavenças no relacionamento ao longo de todo o filme. Com a inevitável separação, menos pela instabilidade da relação do que pelos anseios de Fai em voltar para casa, percebe-se que o Felizes juntos foi tão forte e explosivo quanto transitório e etéreo.

Felizes juntos (Cheun Gwong tsa sit), Hong Kong, 1997, 98 min
Direção: Wong Kar-Wai
Fotografia: Chistopher Doyle (também de "Eros", "2046", "Amor à flor da pele", "Anjos caídos", "Amores expressos")
Elenco: Tony Leung Chiu-Wai, Leslie Cheung, Chen Chang, Gregory Dayton