quarta-feira, abril 05, 2006

É Tudo Verdade 2006


Abaixo, breves comentários sobre os pouquíssimos filmes que pude assistir no festival:

O Homem-Urso

Antes de falar propriamente de O Homem-Urso, uma curiosidade: fui assistir ao filme no Odeon e, minutos antes da projeção, a fita arrebentou. Amir Labaki, organizador do É Tudo Verdade, subiu ao palco para dizer que pela segunda vez a cópia arrebentava antes de uma projeção no Rio (a primeira foi no ano passado, no Festival do Rio). Começaram então a exibir o dvd, mas agora os problemas eram digitais. Paciência tem limite. Saí e fui assistir no Memorial Getúlio Vargas, no último dia do festival.

O filme de Werner Herzog é uma reunião de fitas gravadas por um ecologista que por 13 anos esteve na convivência de ursos castanhos. Em 2003, entretanto, quando Timothy Treadwell já julgava-se um urso em pele humana tamanha era a intimidade (por parte dele) com os bichos, ele foi devorado por um velho urso faminto. De quebra, a namorada foi junto. Desse episódio não há imagens já que o ataque surpresa não possibilitou a abertura da lente da câmera. O que há como registro é o áudio, mas Herzog optou por não reproduzir para o espectador a tragédia.

Aos poucos, o filme vai mostrando a mente confusa de Treadwell. Posicionado de frente para as câmeras que levava consigo nas incursões pelas florestas, o ecologista e cineasta amador explicita uma paranóia em relação ao resultado de sua imagem, o que vai além do olhar do ecologista. Treadwell, como sabemos ao longo do documentário, tem um histórico de envolvimento com drogas e parece apresentar um comportamento quase esquizofrênico na lida com ursos, raposas, com as instituições protetoras dos animais e os guardas dos parques. Apesar de tudo, Herzog mantém até o fim uma abordagem extremamente respeitosa em relação ao personagem. Aponta, no máximo, uma "tendência para o caos", ao parafrasear Hobbes.

O Homem-Urso (Grizzly Man), EUA, 2005, 103min Direção: Werner Herzog


Operação Lua

Stanley Kubrick, para conseguir o efeito de luz de velas no belo Barry Lyndon, precisou de uma lente especialíssima, desenvolvida pela NASA. O diretor só conseguiu a lente porque havia um conchavo entre ele e a agência espacial. É que no passado, mais especificamente em 1968, Kubrick, cedendo aos pedidos do governo americano (este, desejoso de se equiparar e ultrapassar os avanços tecnológicos da União Soviética), aceitou criar em estúdio a ida do Homem à Lua. Na época, o diretor filmava 2001, Uma Odisséia no Espaço e mostrou, portanto, habilidade técnica o suficiente para enganar um planeta inteiro (claro, há exceções: você com certeza conhece algum avô que não acredita nessa balela de um pequeno passo para o homem e um grande salto para a humanidade). Além de contra-argumentos da Física (gravidade etc etc etc) para desmascarar as imagens do homem na Lua, há, inclusive, o depoimento do todo-poderoso secretário de Defesa americano Donald Rumsfeld. Ai você pensa, se esse carinha, que como sabemos é um grande mentiroso, deu um depoimento para dizer que o homem não pisou no satélite natural da Terra, então só pode ser brincadeira. Mas aí o filme acaba e a gente se pergunta: será que pisou mesmo? É tudo mentira?

Operação Lua (Operátion Lune), França, 2002, 52min Direção: Willem Karel


Person

Com a presença da diretora do filme e VJ da MTV Marina Person, assisti, no Odeon, a um documentário de família, mas nem por isso menos belo e competente. Marina Person resgata as lembranças do pai, o cineasta Luis Sérgio Person, através dos depoimentos de sua irmã Domingas e da mãe, a também cineasta Regina Jehá. No lado afetivo-profissional, Marina conversa com personalidades das artes, que conviveram com Person, como, por exemplo, Carlos Reichenbach, Zé do Caixão, Antunes Filho, Ney Latorraca, Eva Wilma, Jean-Claude Bernadet e Jorge Ben Jor, cujas músicas trilham o documentário. Com bastante eficiência, a diretora faz de forma quase transparente a ponte entre os depoimentos sobre o Person cineasta e o Person pai, o que resulta num filme que flui sem fissura alguma na narrativa.

O tom assumidamente passional do filme revela ao espectador as intenções da diretora: fazer uma homenagem afetiva ao pai, mas também reaver o valor da filmografia de Person, que ambientou a maioria de seus filmes em São Paulo. Grande crítico e contemporâneo do Cinema Novo, Person teve uma carreira fora dos holofotes, apesar do sucesso de crítica de seus filmes. Em Person, a partir das imagens de São Paulo S/A, a personalidade existencialista do personagem, interpretado por Walmor Chagas, é entrelaçada e analisada como alter-ego do cineasta. Imagens de arquivo de uma entrevista que o cineasta concedeu à TV Cultura têm um poder tão forte no filme que parecem recuperar a alma de Person.

É entre as fotos de Luiz Sérgio Person, o rio e as árvores do sítio da família que Marina conduz a mãe e a irmã às reminiscências, incluindo aí a própria diretora cuja aparição constante na tela é antes de tudo um mergulho apaixonado e profundo em Person. Na cena final, Marina e Domingas caminham sobre os trilhos, atravessando um túnel e encontrando a luz e o verde da floresta no outro lado. Marina foi à floresta encontrar o pai.

Person, Brasil, 2006, 73min Direção: Marina Person


Leituras

Da produção de imagens: Consuelo Lins, professora universitária, cineasta e assistente de direção de Eduardo Coutinho, em viagens por trens e metrôs de Paris, filma com uma câmera de celular a introspecção de passageiros em suas leituras. Fragmentos de imagens das leituras, imagens obtidas por um simples telefone celular, pessoas em trânsito. Fugacidade.

Da possibilidade de leituras: os franceses lêem do "Código Da Vinci" ao mais erudito filósofo. Tudo isso cabe num metrô. Na França, a leitura é um hábito tão arraigado na população que chega a ser quase involuntário. A maioria dos franceses sabe limitar o tempo que passam de frente para a TV. No Brasil, a fraca disseminação do livro (seja pelo preço do livro ou pela falta de hábito do brasileiro em abrir um) não é somente ruim para editoras e livrarias, mas acarreta problemas na leitura do discurso por trás da imagem no cinema e na televisão. Ler livros é pré-condição para ler o mundo, no mais amplo sentido.

Leituras (Lectures), França, 2005, 6min Direção: Consuelo Lins


Notas: na vinheta que antecede os filmes do É Tudo Verdade 2006 a voz off diz que estamos diante de uma seleção dos melhores documentários do mundo. Quem viu I'm Charlie Chaplin (dir: Jay Rosenblatt, EUA, 2005, 8min) sabe que isso não é verdade. Um vídeo caseiro, mal produzido, de uma menininha que se veste de Charlie Chaplin e fica gritando "travessuras ou gostosuras" o tempo todo não pode ter passado por uma seleção tão criteriosa. Nessas horas eu penso na quantidade de bons filmes que ficaram de fora.

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