Fui assistir à A Bela Intrigante, filme de Jacques Rivette, com a realmente bela e intrigante Emmanuelle Béart. Estava pensando em escrever a crítica seca para o novo blog, mas acho que o meio e as circunstâncias para se chegar ao cinema merecem exposição. Por exemplo, partir sozinho num domingo ensolarado para o centro da cidade. Centro vazio, Uruguaiana cheia de pivetes e eu apertando o passo para não passar pelo quinto assalto. No Bob's da Senador Dantas, um casal - um homem e um travesti - fazia algazarra do lado de fora e seguia para o cine pornô, na Alcindo Guanabara. Pego meu milk shake de morango e sigo só, para desembocar na Cinelândia, saindo pela lateral do Amarelinho, lugar onde comi a pior pizza da minha vida, que estava repleto de turistas europeus e norte-americanos. No Odeon, café cheio, mas sala de projeção vazia (menos de trinta pessoas). Também no Odeon, em plena exibição de Rivette - expoente da nouvelle vague francesa - tem barulho de saquinho de doce, de pipoca, sei lá o quê, tem frio (fazia calor do lado de fora, mas levei meu casaco) e tem... mosquito! Sim, essa praga que invadiu o Rio em época atípica. E esse maldito zumbido no meu ouvido e a Béart nua na tela, posando para o pintor. Na verdade, a Béart só se despe na segunda hora do filme. Há muito tempo para isso. Afinal, o filme tem quatro horas de duração! Isso provocou a quebra da regra número dois, que é não dormir no cinema. A regra número um é não sair da sala antes do fim do filme. Essa também quebrei há pouco tempo com a Idade da Terra, do Glauber e quase o fiz com O Signo de Leão, do Eric Rohmer, um dos filmes mais soninhos que assisti. Depois foi tranqüilo. Um filme sobre a pintura e a estética, mas que não reflete em sua linguagem nenhuma pretensão plástica além de um filme do cinema moderno francês. Simples e enigmático. Gênio, arte, pintura, beleza, nudez, mistério, desvelamento da privacidade da alma no interior da França. Quatro horas incansáveis, descontando as sonecas na primeira hora. Uma experiência válida. Por fim, saída apressada e passos largos para chegar rápido à Praça XV. Dúvida: escolher a rua para se chegar à Presidente Antônio Carlos e descer a rua do fórum. Opto pela Almirante Barroso. A Araújo Porto Alegre é deserta e já fui assaltado lá, em plena segunda-feira, às oito da noite, que dirá agora. Imagino depois que o jeans e a camisa branca fizeram o taxista que acabou de passar pensar que sou um garoto de programa peso pena. O carro passa e o bigodudo faz um convite. Passo batido. Ele faz o retorno e passa novamente por mim mandando um beijinho com seu bigodão saliente. Nessas horas é inevitável a lembrança do Rubem Fonseca com suas histórias de mendigos, gays, prostitutas e toda a sorte de habitantes do pulsante e subversivo centro do Rio. Deixando pra trás esses habitantes, chego à Praça XV. O ônibus não está lá. Acabara de sair. Enquanto espero, tenho tempo para ler (em pé), atender o celular para bater papo com a ex-namorada e acertar para o domingo um almoço entre eu, ela e uma amiga. Ainda dá tempo de reclamar do ônibus com as pessoas da fila e repetir sempre o meu discurso de que a prefeitura é a mais incorreta por manter a concessão de exploração do trajeto por esses empresários de ônibus, filhos da máfia italiana que só pensam no lucro e na vendetta. No final do dia, a frase do Godard, que tirei do contexto, se aplica a mim: "ir ao cinema dá uma sensação de se fazer parte do mundo".
A Bela Intrigante (La Belle Noiseuse), França, 1991, 228 min
Direção: Jacques Rivette
Roteiro: Pascal Bonitzer, Christine Laurent e Jacques Rivette
Elenco: Michel Piccoli, Jane Birkin, Emmanuele Béart, Marianne Denicourt
Um comentário:
SAÍR DO CENEMA ENCANTADO COM A PROFUNIDADE DO TEMA.
Postar um comentário