quarta-feira, outubro 08, 2008

Festival do Rio 2008: Editando a guerra - De Palma e Errol Morris


Inscrevendo-se como registro posterior aos filmes que refletiram diretamente sobre a guerra do Iraque, cujo mote foi o de abordar as questões da guerra como fato (vide o excelente filme-manifesto Caminho para Guantánamo (2006), de Michael Winterbottom), Procedimento Operacional Padrão, de Errol Morris, e Guerra Sem Cortes, de Brian De Palma, intencionam uma reflexão sobre a guerra a partir das imagens que dela são veiculadas.

Em Procedimento Operacional Padrão, Morris traz à tona as fotos de Abu Ghaib, num episódio que mobilizou a imprensa do mundo inteiro menos pelas atitudes asquerosas dos soldados americanos e mais pela espetacularização em torno das fotografias registradas pelos próprios soldados. De fato, o que fica evidente no filme (e isso já sabemos antes dele) é que uma guerra, por mais violenta que seja, só é uma guerra quando reverbera na sociedade civil fora dela. E as atitudes para frear uma guerra decorrem do que se conhece sobre ela. Esse infelizmente é o veredicto de boa parte da mídia. Só existe o que está nas TV’s, na internet, nos rádios e jornais. Por isso, o burburinho em torno das fotos de Abu Ghraib.

O que torna o filme interessante é não propriamente a narrativa encadeada dos acontecimentos (o que já acompanhamos pelos jornais), mas as perguntas que o diretor faz às verdades estabelecidas a partir das imagens. Às verdades: os soldados fotógrafos argumentam em favor da liberdade de expressão e dos benefícios que estas evidências trouxeram para que o governo pudesse rever alguns procedimentos. Ao que o filme leva: toda a falação dos personagens envolvidos, tanto dos que fotografaram quanto dos que atuaram nos abusos às vítimas, vira um amontoado de depoimentos sem utilidade (em alguns momentos, inclusive, a intervenção do diretor se faz pela ironia, colocando ao fundo uma melodia melodramática enquanto uma das militares dá sua versão dos fatos).

Morris desestabiliza a idéia de que o registro em si já constituiria uma denúncia e nos leva a crer na possibilidade de soldados ingênuos (idiotas) terem feito as imagens sem pensar na ampla divulgação que as mesmas poderiam ter. Trocando em miúdos: faziam fotografias para usufruto e risos privados e desconheciam as implicações que estas acarretariam. Quase todos foram presos (os fotógrafos – eram três câmeras – e os que participaram diretamente das torturas e humilhações). Quase todos do baixo escalão. O que não resolve o problema da guerra e de Abu Ghraib. Ao final, confrontado com as fotografias de torturados e de um cadáver (este último, com direito a uma soldado apontando para o corpo, munida de um largo sorriso), um dos militares responsáveis pelo caso vê a série de fotos enquanto repete palavras como “abuso”. Diante de uma das fotografias mais conhecidas do caso, a que um iraquiano com um capuz posiciona-se sobre uma caixa, quase desmaiando de sono depois de muitas horas sem dormir, água no chão, braços abertos com dois fios amarrados a cada um dos dedos indicadores, tendo sido devidamente informado que se caísse no chão, morreria eletrocutado, pois bem, diante desta fotografia, o referido oficial responde a Morris: Isto é um procedimento operacional padrão. Questão: qual foi o alcance das imagens divulgadas? Em que colaboraram?


Em Guerra Sem Cortes, Brian De Palma ironiza nos letreiros iniciais ao marcar os eventos do filme como meramente coincidentes com qualquer realidade que possa vir a existir, até sabermos mais adiante que o estupro no filme, de fato, ocorreu e foi cometido por soldados americanos no Iraque. Redacted, no original, evidencia a proliferação e a urgência das imagens da guerra, o que resulta numa constante alteração de registros e estéticas, como se o diretor tivesse colhido as histórias, reunindo-as num manifesto anti-guerra. Brian De Palma faz, aqui, o papel de mediador das narrativas. Assim, assistimos a trechos de um filme de cunho humanista no qual uma francesa narra com voz suave o cotidiano da cidade e dos soldados, vemos as imagens registradas por um cinegrafista e uma repórter acompanhando a tropa, vemos imagens de protestos contra a guerra, no You Tube, e imagens gravadas por iraquianos, sabotando seus hóspedes indesejados.

Não obstante a força da estratégia de De Palma em simular diferentes vozes clamando por um mesmo desfecho, o que leva o filme adiante e o que faz com que este dialogue com o filme de Errol Morris é a denúncia pelas imagens. Também em Guerra Sem Cortes, um soldado que quer se tornar cineasta quando voltar ao seu país registra imagens inéditas do alojamento, da “verdade sobre a guerra”. Posteriormente, é o mesmo soldado quem registra o estupro. Como em Procedimento Operacional Padrão, o soldado conforma-se em só registrar e nada mais. Novamente, a pergunta se desloca do fato para a eficiência de registro desse fato. Haverá punição a partir das imagens? Só existe o que está registrado? Deixar de intervir para só registrar basta para o fim da guerra? Em Procedimento Operacional Padrão, uma das acusadas se defende chamando atenção para sua ínfima importância e argumentando que sua denúncia diante das autoridades militares e dos tribunais não teria efeito. Brian De Palma corrobora essa idéia, ao mostrar um soldado (o único que não teve parte no crime) diante de seus superiores tentando fazer a denúncia, mas sendo constantemente colocado como suspeito. Pelo que tudo indica, há punição. Só não se pode voltar atrás. De Palma, portanto, termina com imagens reais de vítimas do poder bélico americano, sob a legenda “efeito colateral”.

post scriptum: Lançado há pouco, o livro Mas afinal... o que é mesmo documentário?, de Fernão Pessoa Ramos, professor da Unicamp, aborda teoricamente algumas das principais viradas estéticas e políticas no campo do documentário. Mapeando a "tipologia do sujeito-da-câmera na tomada", uma das classificações para este sujeito que intervém na ação, o autor denomina como "sujeito-da-câmera tentando agir, mas impotente": "Seu revelar-se implicaria fim da ação para si à distância e o surgimento de um novo foco de embate que atingiria diretamente sua presença na tomada", "A impotência pode também ter uma dimensão profissional, ou ser resultado da incapacidade real do sujeito-da-câmera em interferir no transcorrer da ação." (pág.102).
Como se vê, a questão da interferência na ação (se os soldados poderiam ter interferido nos fatos, e não somente argumentando com imagens da denúncia) é mais complexa do que, de fato, tentei colocar. De todo modo, reafirmo o êxito dos diretores (Morris e De Palma) num viés de abordar a proliferação e a espetacularização das imagens da guerra na mídia.

2 comentários:

Anônimo disse...
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Marcos disse...

Olá Eduardo,

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