quinta-feira, outubro 02, 2008

Festival do Rio 2008: Mostra Gay: filme de gênero?

No jornal O Globo, de 28 de setembro, a coluna móvel Logo trazia uma reportagem de Suzana Velasco, levantando questões sobre a pertinência de uma mostra gay dentro do Festival. Falava-se, inclusive, da qualidade dos filmes e da relevância dos diretores. Caso, por exemplo, de Brokeback Mountain, filme de Ang Lee exibido não na Mostra Gay, mas na Mostra Panorama, dedicada aos filmes mais aguardados e de diretores conhecidos. "Brokeback mountain, de Ang Lee, é um filme gay ou um filme sobre solidão e encontro?" "Estaria a mostra gay fadada a filmes de qualidade inferior?", pergunta a repórter.

E a dúvida pode até ser endossada pela qualidade da maioria na mostra. Filmes como The Living End (1992/2008, EUA, de Gregg Araki), ainda que "remixado e remasterizado", como diz no título, envelhecem mal. Em chave diferente de As Testemunhas (2007), filme de Andre Techiné, exibido no Festival do Rio 2007, cuja trama retrata o aparecimento da AIDS entre os gays em meados da década de 1980 e aborda o tema numa linguagem mais à maneira "clássico-narrativa", The Living End explora o tema com um estilo de road movie trash-pop e com a já batida metalinguagem (citando Godard nas falas e no cartaz de Made in USA, Andy Wahrol em cartaz de filme, Derek Jarman em capa de revista e a interminável discussão sobre o fim do cinema, assunto sobre o qual o personagem John, uma cópia melhorada de Boy George, precisa escrever um artigo). Também não são poucas as referências musicais da época, que chegam a se refletir na personalidade de John (Joy Division e The Smiths, por exemplo. Leia-se humor melancólico passando pelo depressivo).

No mais, The Living End ora dá a impressão de um filme universitário que às vezes se quer virtuoso e cult, pelo modo como a câmera conduz a narrativa e pelos cortes secos, ora se assemelha mais a um daqueles filmes datados de uma certa década e que, visto agora, soa como um amontoado de clichês cansativos. Não sei se pela produção cultural dos anos 80, que insiste em voltar com a reciclagem de temas, modas e bandas que feneceram no alvorecer dos anos 90 ou porque, como diz o namorado de John, tudo o que foi conquistado pela revolução sexual nas décadas anteriores (60 e 70) trouxe consequências marcantes e trágicas para a gerações posteriores, entre as quais, a AIDS e essa sensação de déjà vu que inspira um ar blasé em quem vê os movimentos culturais e sociais em eterno círculo.

Em alusão a esse 'legado' que a liberdade sexual deixou, parece que na cultura, de um modo geral, o que ficou nesse início dos anos 90 (período de produção do filme) é a reciclagem do que já havia sido os anos 80. Assim, ver The Living End nos anos 2000 soa como o déjà vu do déjà vu. Em suma, um filme que dá voltas circulares e que nos seus 86 minutos cansa o espectador ao passo que seu modo de narrar deveria despertar sensação oposta.

Qual é o gênero?
Ainda sobre a inclusão ou não de filmes em mostras temáticas, alguns títulos fazem perdurar a dúvida. Assisti a alguns filmes de gênero (gênero narrativo mesmo) que poderiam estar em outra mostra. Chris e Don: uma história de amor (Chris & Don: A Love Story, 2007, EUA, de Tina Mascara, Guido Santi) fala da relação entre o escritor Christopher Isherwood e o jovem Don Bachardy. Poderia estar na mostra de documentários. E seria um filme para todos os públicos. Garoto dos Sonhos (Dream Boy, 2008, EUA, de James Bolton), outro filme da mostra gay, aborda as descobertas sexuais mais pelo lado do afeto e termina num suspense, beirando o gênero de filme de terror, com direito a casa mal assombrada e personagem com música de vilão. Eis o filme de gênero.

Os filmes citados e os outros filmes da mostra gay ficam, assim, restritos a um público segmentado, já que, por observação empírica, 90% do público é gay. Se por um lado cria um ambiente propício inclusive a flertes e troca de olhares (sim, o cinema - o cinema, não o filme - é espaço de socialização, inclusive para flertes), esse tipo de mostra cria também um espaço de exclusão dos "não-gays" já que esses filmes deixam de ser contemplados por olhares variados.

Esse debate acerca da conquista de espaço pelos gays á a pauta do dia há décadas. É a querela entre iluministas - que pregam a idéia do homem universal e igualitário, num mundo em que as políticas contemplam a todos, independente de sexualidade - e os culturalistas - que lutam pela marcação da diferença (a Parada Gay, por exemplo), com bandeiras particulares, mas correndo o risco de serem vistos sempre como os diferentes, destacados desse homem universal e definidos antes pela sexualidade. A Mostra Gay é, sem dúvida, uma conquista, mas agora precisa ser repensada. Em termos estéticos (porque corre o risco de ficar com os filmes relegados pelas outras mostras, já que nenhum filme se restringe somente ao assunto sexualidade) e em termos políticos (porque precisa pensar uma estratégia que leve os filmes gays a todo o público).

2 comentários:

Luiz disse...

Eduardo,

Excelente post. Realmente os filmes da mostra gay afastam os não-gays, mesmo que grandes filmes estejam sendo exibidos.

Visitou o site especial da Moviemobz? Fica a dica: http://www.moviemobz.com/browse/festivaldorio2008

Eduardo Miranda disse...

Oi, Luiz, obrigado pelo comentário. Acho realmente difícil uma mudança no perfil da mostra gay. Sua extinção (o que eu não defendo) seria considerada um retrocesso (apesar d'eu não enxergar dessa forma). Como você disse, afasta o público geral, de fato. Ah, valeu pela dica do moviemobz.

Abraço!
Eduardo