terça-feira, outubro 02, 2007

FESTIVAL DO RIO 2007 (4)

EU NÃO QUERO DORMIR SOZINHO *****
Depois de sair da sessão de Eu Não Quero Dormir Sozinho pensei imediatamente em O Rio, outro filme de Tsai Ming-Liang, justamente porque os dois filmes têm em comum uma abordagem do precário. Em Eu Não Quero Dormir Sozinho Hsiao-kang é atacado na rua e logo depois é encontrado caído por um grupo de homens que o levam para um cortiço. Lá, um dos homens do grupo, Rawang, cuida de Hsiao enquanto este se recupera. Rawang passa a sentir uma afeição maior por Hsiao e este sente-se atraído pela garçonete Chyi na medida em que vai se recuperando. Os planos, estáticos e de longa duração, tornam-se quase independentes uns dos outros por comportarem cenas inteiras num único enquadramento – principalmente no período de convalescença de Hsiao. Em outros momentos, a câmera procura um ângulo estrategicamente mais enviesado para permanecer fixa e captar o que acontece na cena. Num plano, o colchão, que foi importante em toda a trama, agora flutua num lugar tomado pela água (mais um ponto em comum com O Rio) e, apesar da doença, da fumaça e da água que impedem o fluxo de vida, ele entra serenamente em quadro para mostrar uma das imagens mais belas do cinema. Tsai Ming-Liang sabota a trama em prol das sensações. (Dir: Tsai Ming-Liang, Taiwan/França/Áustria, 2006)



SOMBRAS DE GOYA ***
A proposta de Sombras de Goya é bastante interessante no que se refere ao título do filme. As sombras são dadas a três níveis de leitura. O primeiro, pelas sombras pintadas por Goya, no filme. O segundo, pelo contexto sombrio daquela época, quando a Espanha estava sendo tomada pelas invasões francesas de Napoleão, e, num terceiro nível, o termo sombras permite uma leitura referente à fotografia e à luz na tela de cinema. Neste último, Carlos Saura talvez tenha traduzido melhor as sombras em seu Goya, ao fazer alusão direta às telas do pintor. Um outro problema que vejo no filme de Milos Forman, com roteiro de Jean-Claude Carrière, é não trabalhar no meio termo, ou seja, tendendo demasiadamente para o lado de um cinemão comercial: estilo narrativo clássico, atores internacionais (Javier Bardem e Natalie Portman) e língua inglesa num filme que se passa na Espanha. Ou seja, sem fazer concessão ao que poderia vir a ser um filme mais sofisticado. A questão da língua talvez fosse mais aceitável se Milos Forman fosse inglês ou norte-americano, por exemplo. Mas não o é. Tudo bem, a produção é norte-americana, mas isso não alivia os ouvidos de quem vê cenas da Espanha e ouve o idioma inglês, com a péssima idéia de colocar uma ou outra palavra em espanhol entre as falas em inglês. O desfecho, afinal, aparece como uma redenção para um filme tão cheio de climas e efeitos. (Dir: Milos Forman, Estados Unidos/Espanha, 2006)





PARANOID PARK ****
O novo filme de Gus Van Sant pode até não ser dos melhores (dos mais recentes, gosto muito mais do Elefante e do Last Days), mas não se pode deixar de reconhecer que o diretor vem trabalhando coerentemente nos últimos filmes. Gus Van Sant tem colaborado para a criação de uma estética contemporânea da juventude americana bastante associada à idéia, senão do pessimismo, ao menos da melancolia (É esse um dos eixos temáticos de Elefante, Last Days, Garotos de Programa). Tudo parece letárgico em Paranoid Park: o tempo dilatado (a câmera lenta é usada dentro de um propósito bastante pertinente), a fotografia suja e escura e uma nostalgia/ironia em desterritorializar as músicas de Nino Rota feitas para filmes do Fellini. O crime em Paranoid Park não é punido física e institucionalmente. Como em Elefante, aqui também o personagem se chama Alex (a-lex = sem lei). Está aí o pessimismo com os projetos coletivos, com o futuro. Isso não significa que Gus Van Sant faça um julgamento moral dos fatos na trama. Pelo contrário, é uma constatação totalmente amoral. A punição do personagem consiste numa branda autopunição. Exorcizar a culpa é escrever sobre ela. E fica por isso mesmo. Paranoid Park é o parque dos skatistas, lugar isolado onde adolescentes voam em seus skates, acima da terra, acima das leis. (Dir: Gus Van Sant, Estados Unidos/França, 2007)




4 MESES, 3 SEMANAS E 2 DIAS ****
Pessimista em relação à situação da Romênia nos últimos suspiros sob o regime comunista de Nicolau Ceaucescu, Cristian Mungiu fez um filme cru e desprovido de sentimentos, com a exceção do medo e do ceticismo. Otilia precisa ajudar Gabriela, sua amiga de quarto numa república de universitários, a encontrar um médico num hotel para fazer um aborto, prática ilegal na Romênia de 1987. Quando Dr. Bebe descobre que Gabriela está com cinco meses de gravidez, e não dois como ela dissera, o médico quer aumentar o valor cobrado. Otilia precisa convencer o médico a fazer o aborto, mesmo não tendo o dinheiro para pagá-lo. Otilia faz uma incursão na escuridão da noite sem luzes, percorrendo as ruas a fim de encontrar um lugar para jogar fora o feto. Nos poucos momentos em que se vê outras pessoas, a relação gira sempre em torno da troca e do comércio de mercadorias e produtos ilegais no país. É o paralelo que se faz com os personagens (o médico, Otilia e Gabriela) na margem da sociedade. É a sensação que se tem ao ver Otilia num jantar, diante dos pais e os amigos dos pais do namorado, a falarem com certo desdém de pessoas menos instruídas ou que vêm do interior para a cidade. O deslocamento e o abismo entre Otilia e as pessoas à mesa é traduzido num plano estático e bastante longo em que Otilia fixa o olhar num ponto fora do quadro ao mesmo tempo em que os outros dão risadas e se divertem a seu redor. É no plano final também que o olhar de Otilia, diante da amiga Gabriela, parece apontar para algo fora do quadro, um ponto de fuga, tentativa de fuga, talvez. 4 meses, 3 semanas e 2 dias e A Criança, dos irmãos Dardenne, parecem ter mais em comum do que apenas a Palma de Ouro. (Dir: Cristian Mungiu, Romênia, 2007)




DESEJO E REPARAÇÃO *****
Diferente de Orgulho e Preconceito, em que havia uma distância muito grande entre os sentimentos dos personagens e o sentimento espectatorial (no meu caso), e a trama, apesar de bela, soava fria, em Desejo e Reparação, baseado no livro Reparação, de Ian McEwan, Joe Wright investe mais na personalidade de seus personagens. Keira McNight, atriz que interpretava uma personagem pálida no filme anterior, tem neste último filme uma tinta bem mais passional. Em 1935, Cecilia Tallis, jovem rica, apaixona-se pelo caseiro Robbie. A relação é interrompida quando Briony, irmã mais nova de Cecilia e escritora promissora, acusa injustamente Robbie de ter cometido um estupro na família. A separação vem com a prisão de Robbie e sua ida para a guerra. Mais tarde, Robbie e Cecilia se encontram para reatar o relacionamento. Briony, agora enfermeira na guerra, quer reparar o mal que fez a Cecilia e Robbie. Escritora conhecida, o modo que Briony encontra para desfazer seu erro é mudar na ficção o que já é imutável na vida. Destaque para o roteiro de Christopher Hampton e para o uso da trilha sonora, sempre se confundindo com os sons diegéticos na primeira parte do filme. (Dir: Joe Wright, Reino Unido, 2007)




O BANHEIRO DO PAPA ****
Mais do que um filme uruguaio, existe em O Banheiro do Papa um espírito latino-americano, presente também em filmes como Diários de Motocicleta, que fala de uma América pobre e ainda esperançosa com o que vem do centro do mundo. Mais particularmente, há em O Banheiro do Papa um resquício de cristianismo católico que une apesar das adversidades. Por outro lado, é uma América que se constrói na precariedade e na impossibilidade de se igualar aos países ricos. Beto tem a fé, mas sobrevive com a família às custas do contrabando que faz entre Brasil e Uruguai sobre a bicicleta. É a bicicleta que resgata a América rural, campestre, e que permite compor as mais belas imagens do filme, como as corridas entre Beto e seu amigo, tendo ao fundo a paisagem matinal, orvalhada e iluminada pelo sol. É a fé cega que os diretores Enrique Fernandez e César Charlone vão sabotar. Em 1988, a cidade de Melo, na fronteira entre Brasil e Uruguai, vive a expectativa de uma visita do Papa João Paulo II. As famílias de Melo vêem na visita a oportunidade para ganhar algum dinheiro com os milhares de visitantes que são esperados. O Papa é, então, o próprio milagre. Beto, abrindo mão dos projetos de estudo da filha, constrói um banheiro na calçada de casa para uso dos visitantes. O resultado frustrante mostra uma das facetas falidas do catolicismo. (Dir: Enrique Fernandez e César Charlone, Uruguai/Brasil, 2007)

3 comentários:

Anônimo disse...

O "Sombras de Goya" é meio cinemão demais, né? sei lá, ainda to pensando nesse filme, gostei de algumas coisas mas nem tudo. E fiquei com muito vontade de ver o outro, pena que não deu... Bjo!

Anônimo disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Eduardo Miranda disse...

Phil, pelo que andei lendo de críticas, acho que muita gente gostei do Paranoid Park, sim. Banheiro do Papa acho que pode entrar no circuito brasileiro.